Conheça Pepê, o curandeiro mais jovem de uma religião única da Chapada Diamantina

Ele se tornou pai de santo aos 12 e, aos 14, abriu o próprio terreiro em Lençóis

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  • Fernanda Santana

Publicado em 22 de maio de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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. por Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê

Não houve sequer uma vez em que a negatividade tenha pairado sobre a cabeça de Pedro Gabriel dos Santos Jesus, o Pepê, 20 anos, e o caboclo Tupinambá não aparecesse. Na época uma criança, já emprestava o corpo para o encantando que o dizia: “A luz da sua vida não é de energia e sim de vela”. “Era eu colocar coisa negativa na cabeça e o caboclo vinha”. Do Orum, o mundo espiritual na língua ioruba, o caminho dele começava a ser traçado.

Se nunca pôde ser criança, Pepê não reclama. Quando olha para o passado e lembra das vezes em que não pode se entregar às brincadeiras infantis, sem responsabilidades, também não sente tristeza, mas orgulho. Ele foi escolhido e é o curandeiro mais jovem do jarê, em Lençóis, na Chapada Diamantina.“Eu não queria, via meus amigos brincando e não podia, porque eu tinha obrigações a fazer”.O corpo de Pepê ainda era o de um recém-nascido frágil na primeira vez em que um encantado desceu na sua cabeça e ele ficou tão fraco que a mãe e a avó temeram o pior. A agonia cessou, mas nunca definitivamente. Só sete anos depois Pepê diz ter conhecido a tranquilidade, numa cerimônia do jarê. Os atabaques tiravam a cantiga para Oxóssi, que incorporou em Pepê. “Tive que me iniciar e aí começaram minhas obrigações mesmo”. 

A beleza das obrigações, as luzes das velas acesas, o som dos atabaques, tudo “estremecia meu coração”, conta Pepê. A pouca idade fica visível na expressão juvenil dos olhos e no modo de falar, o que não impede que Pepê seja um líder, posição que ocupa desde a infância.

Em 2014, foi sagrado Pai de Santo e curandeiro e abriu, amparado pela família, o Castelo de Ogum, o único terreiro na zona urbana de Lençóis, maior berço do jarê. Tinha apenas 14 anos. “A religião me tornou mais sério, um líder desde cedo, uma pessoa muito responsável". Terreiro dentro de casa e uma vida no jarê  A avó paterna de Pepê também deveria ter sido curandeira. É ele quem assim conta. Mas, ela não aceitou, “não aprofundou na religião, não quis”. Por telefone, Pepê lamenta o fato de que “a avó pagou o preço”. A visão, antes boa, turvou. Até que chegou o dia em que ela não enxergava mais um palmo à frente do rosto. Tinha ficado cega. A história, e as experiências pelas quais passou, ensinaram Pepê a levar as obrigações religiosas a sério. 

Quando não está dedicado ao jarê é porque está no trabalho, como supervisor na Prefeitura de Lençóis. Pepê não terminou os estudos, mas acredita não precisar dos livros para cumprir seu desígnio. “Se vocês pudessem vir aqui, veriam que não preciso de livros". Sua rotina de serviço consiste em deslocar carros que atrapalhem a paisagem da cidade e multar aqueles estacionados irregularmente.  Pepê e a família no terreiro (Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê) Quem o vê na labuta, das 8h às 15h, não imagina que ele é o respeitado Pai Pepê. Mas, sempre tem quem reconheça e avise: “Tem que respeitar, porque esse é o curandeiro de Lençóis”. Pepê, timidamente, acha graça.“Me sinto valorizado, vários aqui me consideram porque eu sou humilde, muitos falam, tocam no meu ombro, dão valor a mim”.Sempre que tem tempo, vai à roça se dedicar ao arado da terra e ao plantio de frutos para a colheita da próxima estação. Sobre o chão hoje despontam pés de banana, laranja e limão. Já ocorreu de varrer o horizonte com os olhos e enxergar ali o terreiro que no bairro do Tomba, próximo ao centro de Lençóis e um dos mais populosos. 

A ideia sempre é momentânea, nunca se transformou em projeto. E Pepê assim quer que permaneça, mudando a direção das coisas somente se forças maiores ordenarem.“Não me vejo tirando o terreiro de lá e colocando aqui. A gente precisa ficar onde está, somos uns dos poucos”, diz.O terreiro dele divide espaço com a casa onde mora com a família - esposa, dois filhos, mãe e avó. Pepê é pai de três, mas o mais velho, João Pedro Gabriel, de 5 anos, mora com a mãe. Na vida do curandeiro, a religião está presente em tudo, inclusive no nome do segundo filho com a atual esposa, Ediclécia, com quem é casado há dois anos. 

Ela estava grávida de dois meses quando a entidade Ogum de Ronda se fez anunciar e mostrou que o nome do rebento precisaria ser Pedro Antônio. O bebê assim nomeado já gasta a pele ainda casta das mãos para tocar nos atabaques do terreiro. “Meu mais velho também já tem calinho nas mãos de tocar”. A mais nova, Kemile Gabriele, está com um ano e logo mais deverá seguir o mesmo caminho.  Três gerações nutridas pelo jarê (Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê) “Sempre que vou me concentrar, Pedro Antônio, hoje com 2 anos, pede silêncio e diz: “o santo vai chegar no meu pai”. Os atabaques tocam e ele fica no canto só dançando”, conta o pai, com tom de orgulho. “Agora, o que eles quiserem seguir, eu não posso fazer nada, só mostrar a origem do pai deles, a nossa origem, para eles entenderem”.

Pelo tempo que passa no quarto dos santos, no terreiro, os filhos começarão a desconfiar, conforme a idade permita, o significado do jarê na vida de toda a família.

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Pepê passa horas concentrado com os orixás dentro do terreiro  Depois do trabalho, seja nas ruas de Lençóis ou na roça, é naquele quarto que Pepê pode ser encontrado. “Fico até meia noite concentrado. Antes de começar nesse trabalho de agora, há uns cinco meses, era só roça e terreiro”, lembra. O orixá do ori (cabeça) de Pepê é Oxóssi, mas o Boiadeiro é o chefe do terreiro. “Oxóssi deixou o Boiadeiro como esse chefe do terreiro, é da confiança dele”.

Os mistérios também envolvem o jarê, como religião de matriz africana e indígena, e a explicação de Pepê sobre a liderança da Casa é aqui encerrada. O conhecimento de Pepê é colocado em prática, não explorado em explicações que talvez sequer fossem entendidas por quem não vive o jarê. Dos anos de curandeiro, por exemplo, ele lembra do caso de uma jovem que teimava em atear fogo em partes da própria casa. Ela tinha esse hábito e nada a fazia parar.

 

Era problema para curandeiro dar jeito e foi Pepê quem a recebeu. “Ela chegou aqui, Ogum rezou para ela e ela nunca mais fez isso”. Há uma semana, ele também diz ter sido salvo - mais uma vez - por essas forças que conhece desde bebê. 

O orixá Exu avisou, enquanto ele caminhava em direção à roça, que era preciso estar atento, pois um animal peçonhento se delinearia no caminho. Pouco depois, uma cascavel quase cruzou Pepê, que, avisado, se livrou do perigo.