Crianças empoderadas mostram que consciência negra vem da infância

No Dia da Consciência Negra e do Afro Fashion Day, os pequenos revelam que, com educação e autoestima, crescem sabendo que seu lugar é onde quiserem

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 20 de novembro de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil, Arisson Marinho e arquivo pessoal

Quando era criança, a diarista Sirlete Santos da Silva, 43, viveu na pele as dores do racismo na própria escola. Ela não podia passar um dia sem alisar o cabelo que era chamada de ‘bombril’. Quando colocava tranças, os colegas cantavam o trecho “Nega do Cabelo Duro”, da música Fricote, de Luiz Caldas. Toda essa humilhação se reverteu em força para a mãe empoderar a filha Maria Eduarda, 10. “Minha maior alegria é ver que minha filha não precisa passar por tudo que passei”, diz.

Não é que o racismo tenha acabado ou deixado de afetar os pequenos, mas o empoderamento infantil surge como um grande aliado no combate ao grave problema social. “Minha filha diz que ama o cabelo dela e a sua cor. Na escola todo mundo gosta, não fica com os comentários que eu ouvia”, explica Sirlete, que tem como missão de vida mostrar para Maria Eduarda que ela pode ser o que quiser.

Nesta sexta (20) em que celebramos o Dia da Consciência Negra e quando acontece o Afro Fashion Day, a criançada que vem ocupando seu lugar terá mais um local para se enxergar.  O CORREIO colheu relatos de seis pequenos e  também de seus pais sobre como experimentam essa autoestima elevada no seu dia-a-dia. A lista tem desde criança que influenciou a mãe a parar de alisar o cabelo a menino que sonha em chegar na idade de tocar o atabaque no terreiro dos pais.

 E ocupar esse local sonhado é uma das necessidades da representatividade, conceito associado com a temática racial. “A ideia de empoderamento tem origem nos Estados Unidos e se tornou importante nos movimentos sociais. No caso brasileiro, ele ganha outro sentido, diretamente ligado à representatividade. A gente se empodera quando se vê representado, quando se faz presente em espaços que nos são negados”, explica a coordenadora da Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Ufba, a doutora Jamile Borges. 

Para a professora, essa representação ainda precisa crescer nos espaços de mídia, arte, esporte e política. E quanto mais pessoas negras ocuparem esses espaços, maior será a quantidade de crianças que vão amar seu cabelo, sua cor, que farão questão de serem black, de se amar como são e não se sentirem inferiores. 

O Afro Fashion Day é um projeto do  CORREIO com patrocínio do Hapvida, parceria do Sebrae, apoio do Shopping Barra e loja Lagares e apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador. 

Maria Eduarda Silva, 10 anos, a menina que se inspira na mãe para se amar  “Eu me amo como sou. Amo a cor da minha pele e a forma como meu cabelo é. Ah, também amo minha mãe”, diz Maria Eduarda, 10. A influência para todo esse auto-amor vem da mamãe: a diarista Sirlete Santos da Silva, 43, que viveu na pele as dores do racismo na própria escola. Ela não podia passar um dia sem alisar o cabelo que era chamada de ‘bombril’. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)  A humilhação se reverteu em força para a mãe empoderar a filha: “Minha maior alegria é ver que minha filha não precisa passar por todo que passei”. Para fortalecer essa consciência negra, Maria Eduarda também consome artistas e influencers negros. “Eu aprendo  a importância da minha cor e a combater o racismo”, afirma.  

A mãe, Sirlete, também contribui: “Digo sempre que, se alguém disser que ela é feia, é para ela dizer que é linda e que se ama. Não precisa ser branca ou ter o cabelo liso para se amar. Quem pensa o contrário é preconceituoso”.  

Benin Ayô Santana, 7 anos, o menino que sonha em chegar na idade de tocar o atabaque no terreiro  Ele gosta de  ‘bater o baba’, jogar basquete, ler livros e, no futuro, quer ser veterinário e até jogador de futebol. Mas seu sonho mesmo é chegar na idade de tocar o atabaque no terreiro da mãe (Sultão das Matas) ou no do pai (do Cobre). “Eu gosto de ir, brinco com outras crianças, mas ainda não posso tocar o atabaque”, reivindica Benin Ayô, 7, que até tem um djembê em casa e considera Iemanjá sua orixá preferida. (Foto: Nara Gentil/CORREIO) O pai André Santana, 40, professor universitário, explica que desde a primeira vez que entrou no terreiro que o menino reivindica essa relação com a rainha das águas salgadas, mas. que como ele ainda é pequeno, não há uma definição se é filho dela mesmo. “Ele também ainda não pode tocar nas solenidades, como quer”, explica André.

Enquanto isso, Benin, escuta músicas de Emicida ou lê livros de autores negros, como Amoras e E Foi Assim Que Eu e a Escuridão Viramos Amigas, escritos pelo seu cantor preferido: “Emicida fala sobre temas interessantes e os clipes dele são sempre legais”.

Maria Eduarda Gomes, 5 anos, a menina que influenciou a mãe a parar de alisar o cabelo   No passado,  a secretária Alini Gomes, 41, vivia com o cabelo alisado. Até que a filha Maria Eduarda Gomes, 5, apareceu em sua vida para mudar tudo. Sem querer submeter a pequena ao alisamento, Alini deixou o cabelo de Dudinha no estilo black power.  “Só que ela me perguntava o motivo do nosso cabelo ser diferente. Era como se ela não se visse em mim. Mas por causa do questionamento, passei a refletir sobre a importância de mudar e assim eu fiz”, diz Alini. (Foto: arquivo pessoal) Hoje, a filha não só se reconhece na mãe como tem uma frase certeira na ponta da língua para classificar o cabelo: “Ele é a minha coroa, pois eu sou uma princesa”. Com tanta beleza, Maria Eduarda já faz parte de um grupo criado para o empoderamento de crianças chamado Africanidade Afromeji.

Pelo projeto, ela aprende sobre cultura africana, usa roupas identitárias e até desfila: “Eu gosto de ser negra, pois aprendi que todos somos iguais. Não é porque um é branco e outro é negro que somos diferentes. Temos que amar a todos”. 

Ana Cecilia Moreira, 7 anos, a menina que se sente um leão com o seu cabelo black  Sabe qual é o desenho preferido de Ana Cecília Moreira, 7? O Rei Leão, sem dúvida. “Acho meu cabelo parecido com a juba de um leão. Quando estou com frio, o cabelo me aquece. Quando lava, ele fica grande e aí dá para fazer muita coisa. Quando eu solto, ele fica grandão e vira um travesseiro natural”, diz a menina, orgulhosa.   (Foto: arquivo pessoal) Toda essa bagagem lúdica e de grande autoestima vem da mãe Marcele Moreira, 40. Ela é pesquisadora na área de história e, quase como se tivesse dando uma aula, ensina à sua filha noções de identidade: “Quero que ela tenha uma consciência histórica e entenda sua ancestralidade. Me preocupo em fazer com que ela se reconheça como pessoa nesse contexto social e ocupe todos os espaços que quiser”.

Para chegar a todos esses locais, uma série de artistas negros e influentes fazem parte da vida de Ana Cecília. “Gosto de Gilberto Gil e Luedji Luna. Fui ao camarim dela e nós conversamos sobre como nosso cabelo é lindo”, lembra. 

Carina Dias Oliveira, 8 anos, a menina que gosta sempre de se vestir bem  Podem chamá-la   de vaidosa, mas ela vai argumentar que não passa maquiagem todo dia. “Eu me considero linda, todo mundo diz isso”, explica. Além das roupas charmosas, Carina Oliveira, 8, nunca esconde seu cabelo crespo ou suas tranças. “Elas até doem para fazer, mas vale a pena pois o resultado fica muito bom”, diz.   (Foto: arquivo pessoal) A influência para o surgimento dessa personalidade forte vem da família, que não deixa de ensinar a garota a combater o racismo. “É uma situação delicada, pois a gente não quer tirar a inocência dela, mas precisa alertar pro mundo. Eu sempre faço questão de lembrar o quanto ela é linda e a levo para lugares negros para sempre tratarmos dessa questão estética”, afirma o pai, o ator Jorge Washington, do Bando de Teatro Olodum.

Já a mãe Renata Dias aponta que o empoderamento é algo que a filha assimila aos poucos, de forma lenta e processual. "Eu tenho esse compromisso de dar o exemplo e de dar suporte. Faço questão de dar bonecas negras, livros e até ter em casa espelhos para ela se ver muito e ter uma naturalidade com a sua autoimagem", afirma.

A pele preta também está nos ídolos: Gilberto Gil e Iza. E também na maioria das bonecas: “Eu tenho muitas bonecas negras e minhas amigas têm algumas também. A que mais tem é minha melhor amiga”, conta ela.   

Liz dos Santos Rocha, 6 anos, a menina que aprendeu com a mãe a tornar-se negra  Para a pesquisadora Donminique Santos, não basta a pessoa nascer negra. Ela tem que se reconhecer como tal. Com ela, isso só foi acontecer já adulta. Já com a filha, Liz Rocha, 6, o processo já aconteceu. “Ela já se tornou negra aos seis anos. Tem consciência racial e entende os processos de resistências pelos quais passamos”, diz a mãe.   (Foto: arquivo pessoal) Prova disso são os interesses de Liz: seu personagem favorito é o Pantera Negra e os livros preferidos são Meu Crespo é de Rainha e O Mundo no Black Power de Tayó. “Ser negra é ser batalhadora, bonita e ter uma coroa de rainha. É que o fio do meu cabelo parece pontas de uma coroa”, explica.  

Para a mãe, ver a filha com esse repertório é motivo de orgulho: “A gente está sempre contando histórias de personagens negras, e ela se enxerga como negra, ela fala: ‘mamãe, aquela atriz parece comigo, aquelas tranças parecem com as minhas’. Eu vivi processos cruéis de alisamentos e hoje tenho uma filha que sabe que ter o cabelo crespo não é feio”.

Disputa pelos espaços de hegemonia branca Para a doutora Jamile Borges, coordenadora da Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos  da Ufba, é preciso investir na educação para que cresça nas crianças o orgulho da sua raça e da sua cor. “Uma coisa que discutimos em casa é que parte desse processo está relacionado com o estudo. Nosso país ainda é profundamente racista. É fundamental ter uma ideia de horizonte possível. A educação é o caminho”, aponta.

Nesse sentido, Borges destaca que as pessoas de pele preta devem buscar se apropriar das ferramentas hegemônicas que ficaram na mão de pessoas de pele branca. “É se apropriar da tecnologia, por exemplo, de uma leitura crítica das redes sociais. É preciso estarmos atentos a essas discussões para estarmos disputando o espaço que nos foi negado”, opina a acadêmica.

E, a partir do momento que o negro ocupa esse espaço, nasce a representatividade. No campo de atuação da doutora Jamile, isso é algo que precisa ser mais conquistado. Segundo ela, apenas 3% dos professores de pós-graduação nas universidades brasileiras são negros. Ela faz parte dessa minoria:  “Nós queremos ver o negro representado nos espaços de mídia, de arte, de política e também desmistificar a ligação da imagem do negro apenas na capoeira, na dança...  A gente quer se ver representado na física, na astronomia, na medicina e na academia. Toda essa representação vai fazer a criança crescer com a noção de empoderamento”.* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro