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Da Redação
Publicado em 28 de março de 2021 às 16:00
- Atualizado há 2 anos
Gugu foi o primeiro nome da família que Julia aprendeu a falar. Disse o apelido do primo de seis anos, que só conhece por vídeochamadas, antes mesmo de falar papai e mamãe. A gente não ensinou essa palavra, mas Gustavo é o contato de Julia mais frequente com uma criança. Falou a primeira vez e repete um monte de vezes, de dia e de noite. Acorda e fala Gugu. Vai dormir falando Gugu. E aprendeu também a falar Bi, apelido do priminho Gabriel. Eles fazem alguma palhaçada na frente da câmera no Brasil e ela dá risada aqui nos Estados Unidos.>
Outro dia, Julia recebeu um presente lindo do filho de uma amiga: desenhos, um livro infantil, um cartão e uma foto do amiguinho. Brincou com tudo, mas com a foto foi diferente. Ela se sentou e ficou longos instantes segurando a fotografia e observando a imagem diretamente. Depois estendeu a mãozinha com a foto na direção do nosso mural, pedindo para colocar o retrato ali. Acho que, no fundo, ela queria mais crianças não só no mural, mas na vida.>
Para mim, uma das coisas mais difíceis da pandemia é ver Julia crescendo sem o convívio com outras crianças. Ela nasceu no começo de 2020 e a gente ainda estava pensando em como levar uma bebê para passear, quando o surto de covid-19 nos fez entender que o mais seguro era ficar em casa. Já passamos pelas quatro estações do ano com brincadeiras em que a única voz de criança é a dela mesma. Outro dia, precisamos sair e, depois de um tempo, percebi que Julia estava virada para o outro lado, dando risada.>
Olhei ao redor e vi que ela estava conversando, à distância, com uma garota que devia ser uns quatro anos mais velha. Uma conversa sem palavras: com gestos, sorrisos e sentimento. Fiquei calada, vendo a alegria daquele encontro e com vontade de me aproximar, de deixar que se conhecessem de perto. Mas são tempos em que não se pode fazer isso. Então é como se podássemos um pouco a nossa espontaneidade e também a da criança.>
Julia ainda não sabe formular questões, mas talvez as perguntas que não são feitas sejam as mais preocupantes. Como encontrar respostas para problemas ainda sem nome, só que a gente intui e sente que existem? As crianças não são o alvo central nessa pandemia. Mas isso não significa que elas não estejam sendo afetadas e que suas consequências não sejam sérias. Afinal, estão passando uma parte significativa das suas vidas na pandemia, tanto no Brasil, como em todo o mundo. E a dimensão de tempo é muito diferente na infância. São fases importantes para o desenvolvimento e para o convívio social que não retornarão. Algumas notícias já mostram o aumento de problemas de ansiedade, estresse e depressão entre crianças de idades variadas.>
Folheio pela quinta vez seguida o livrinho cheio de rostos de bebês, enquanto imito os sons de suas vozes. Julia bate palmas de alegria, e me devolve o livro. É assim que ela mostra que quer que eu conte de novo a história. É a sua favorita. Um livro cheio de rostos de crianças. Fico me perguntando de que forma ela vai se relacionar com outras pessoas quando tudo isso passar. >
Não sei que tipo de efeito o distanciamento pode trazer para cada faixa etária na infância. Crianças que raramente brincam com outros meninos e meninas. Como será que elas percebem essa ausência de encontros? Como preencher o silêncio que insiste em habitar um lugar que deveria estar cheio de vozes e gargalhadas infantis? Sigo buscando entender esses tempos anormais e quero poder dizer a Julia que não vai ser sempre assim. Que logo ela vai brincar com outras crianças e vão poder se abraçar e até rolar pelo chão se quiserem.>
Na busca de respostas para mim mesma, tento explicar a minha filha que precisamos manter o distanciamento em nome da saúde e da segurança não apenas nossa, mas coletiva. Talvez, no futuro, ela pergunte o que seus pais fizeram nesse momento. E teremos ao menos a tranquilidade de dizer que nos protegemos, por nós e pela humanidade. Mas isso não é o suficiente. É preciso olhar bem de perto para essas e muitas outras questões na formação dessas crianças que assumirão a responsabilidade pelo mundo nos próximos anos.>
Não é nada fácil perceber que a distância que salva vidas pode deixar marcas nesses seres que amamos tanto. Algumas delas sentirão um peso ainda maior, seja por fatores econômicos – que, com certeza, modificam o impacto da pandemia para cada pessoa – mas também pela perda de entes queridos e pela forma que cada família tem de lidar com o luto. Mas uma coisa é certa: elas não irão esquecer. E precisamos aprender a lidar com isso.>
Adriana Jacob Carneiro é jornalista e mãe de Julia, de 1 ano e 2 meses.>