Desafios ao direito humanitário internacional

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  • Da Redação

Publicado em 17 de maio de 2022 às 05:08

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A guerra atual na Ucrânia, como a grande maioria dos conflitos que assolam o mundo, é o palco de inúmeras violações do direito internacional, fruto de uma longa evolução histórica. Dia 28 de abril, dez soldados russos foram indiciados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra presumidos na cidade de Butcha. Essas acusações de violações “da lei e dos costumes da guerra” são as primeiras após a descoberta de 50 corpos, inclusive de civis, espalhados na rua.  O direito humanitário internacional (DHI) é a lei aplicável em tempo de conflitos armados. Estabelece uma série de regras para enquadrar a condução de hostilidades e proporciona uma série de proteções para as pessoas afetadas pelas situações belicosas. A base fundamental deste direito, que visa “humanizar a guerra”, encontra-se nas quatro Convenções de Genebra de 1949, nos seus Protocolos Adicionais de 1977, dos quais a Rússia e Ucrânia fazem parte, e no direito humanitário internacional consuetudinário, que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha compilou em 2005.

Para que o DIH se aplique, a situação de violência na Ucrânia deve ser qualificada de "conflito armado", o que a sociedade internacional reconhece apesar da relutância do chefe de Estado russo, Vladimir Putin, que proíbe até o emprego da palavra “guerra” por seus cidadãos. Prefere falar de uma “operação militar especial”, para justamente evitar a aplicação do direito internacional e evitar uma eventual condenação pelo TPI, competente par julgar os indivíduos responsáveis de crimes de guerra? 

São várias as normas internacionais que foram violadas, pelos dois lados dos beligerantes, mas podemos destacar algumas que refletem seu conteúdo. Desde o início da guerra, houve inúmeros relatos de bombardeios em áreas civis, incluindo áreas residenciais, escolas e hospitais (dados da OMS e da ONG HRW). Se esses fatos fossem averiguados (estamos cientes da guerra de informação dos dois lados), tais atos estariam em total contradição com o DIH que prescreve uma proibição absoluta de atingir “pessoas e edifícios civis”: os ataques só podem ser dirigidos contra “combatentes” ou “objetivos militares”. Isto não significa, no entanto, que quaisquer danos à propriedade civil constituam uma violação do direito, uma vez que esta regra só proíbe ataques diretos a civis. Em outras palavras, danos colaterais a civis ou a seus bens podem ser permitidos em certas circunstâncias listadas. São lícitos, por exemplo, os ataques que causam perdas acidentais de vidas civis, ferimentos a civis, danos a objetos civis, ou uma combinação deles, desde que não sejam excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta prevista. Esta é a regra da proporcionalidade e a análise de cada caso incumbirá ao tribunal. Outro desafio para a jurisdição criminal internacional, será o de investigar se o batalhão Azov do exército ucraniano não se escondeu, conforme as alegações do Exército russo, na maternidade de Mariupol, o que poderia tornar o edifício hospitalar alvo militar legítimo.

Além disso, uma série de declarações do Ministério da Defesa ucraniano expuseram que as forças armadas russas teriam vestido uniformes ucranianos para operações de sabotagem e reconhecimento, assim como uniformes de manutenção da paz, e teriam usado a insígnia da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Se for verdade, este uso impróprio de sinais e uniformes inimigos seria contrário ao DIH.

Este conflito armado na Ucrânia se destaca também pelo uso dos avanços tecnológicos que desafiam um direito criado há mais de 70 anos. Em um conflito armado internacional, os combatentes gozam do status de "prisioneiros de guerra", ou seja, podem ser capturados pelo inimigo e internados durante toda a duração do conflito e beneficiam de proteção quanto à sua vida e dignidade. Assim, a Terceira Convenção de Genebra prevê que os prisioneiros de guerra devem ser protegidos contra intimidações, insultos e curiosidade pública. Os comentários à Convenção de Genebra afirmam que a proteção contra a curiosidade pública é definida como a proibição de divulgação de imagens fotográficas e de vídeo, gravações de interrogatórios ou conversas, e quaisquer outros dados privados, independentemente do canal de comunicação público utilizado, o que inclui a Internet e suas redes sociais. A publicação pelas autoridades ucranianas de fotos, vídeos e documentos de identidade de soldados russos poderia ser então caracterizada crime de guerra. Se o verdadeiro motivo da divulgação das imagens era provar que os prisioneiros estavam vivos e/ou não foram vítimas de execução extrajudicial ou de desaparecimento forçado, existe mecanismos específicos previstos pelo diploma internacional, como os cartões de captura ou as visitas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, meios que preservam a dignidade dos interessados.

Julgar o alistamento em massa, pelo presidente Volodymyr Zelinsky, de todos os homens, ucranianos e estrangeiros, em idade de lutar a pegar armas e resistir aos invasores, a ocupação da usina nuclear Chernobyl pelas forças russas ameaçando o meio ambiente, o uso de armas proibidas, a recusa do agressor de facilitar a criação de corredores permitindo uma assistência humanitária para a população civil presa nas cidades atacadas etc. são os outros desafios que a sociedade internacional, e o TPI em particular, deverão enfrentar uma vez que o direito internacional e a diplomacia fracassaram de novo em evitar essa nova tragédia para a humanidade. 

Juliette Robichez Mestre e doutora em direito pela Universidade Paris-I Panthéon Sorbonne (França). Professora e Presidente da Comissão de Direito Internacional do Instituto dos Advogados da Bahia (CDI-IAB)