Descobridores fracassados

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  • Paulo Sales

Publicado em 20 de julho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Neste fim de semana li um pequeno e precioso livro de Jorge Luis Borges, chamado Atlas. Reunião de relatos de viagens feitas pelo escritor argentino com sua mulher, María Kodama, ele reúne pequenos contos, poemas, apontamentos só na aparência despretensiosos e fragmentos de difícil definição. Há momentos de fascínio, quando Borges penetra naquele território pantanoso e fugidio que compõe a essência do que somos. Em outros, ele nos lembra da singularidade das cidades do mundo, sua beleza particular, seus recantos ocultos, o idioma silencioso de sua arquitetura.

Mas o trecho que mais me fez viajar por regiões desconhecidas foi esse, retirado da apresentação do Atlas: “Não há um único homem que não seja um descobridor. Ele começa descobrindo o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tantas letras do alfabeto; passa pelos rostos, mapas, animais e astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da ignorância.”

Fiquei vários minutos em silêncio, o livro repousando no peito, tentando apreender o que Borges quis dizer. Ou o que eu tentava dizer a mim mesmo a partir do que ele disse. Pensei nos caminhos muitas vezes íngremes e hostis que levam à descoberta de quem somos desde que somos lançados no mundo. Descobrimos logo que nossa origem independe completamente de nós: nosso nome, o país onde nascemos, a época em que vivemos, nossas peculiaridades físicas e psíquicas, a situação financeira e social em que estamos inseridos, o afeto que recebemos (ou não), nada disso é fruto de uma escolha nossa.

Não pedimos licença para existir nem sabemos por que fomos nós os escolhidos pelo acaso. Por qual motivo fui projetado como um estrondo para fora da barriga de minha mãe, num hospital à beira da Baía de Todos os Santos? O que fez com que isso acontecesse num verão provavelmente tórrido de 1970, e não numa primavera amena do ano 3217? Ou por que o tempo a mim destinado não foi o passado remoto, em que poderia ter sido um neandertal com medo do escuro numa caverna na África ou na América, quando não havia África nem América?

Aos poucos nos damos conta também de que nossa presença é transitória: somos apenas inquilinos – e não proprietários – dessa habitação chamada Terra. Nosso epílogo, salvo exceções, não nos pertence. O que faz com que, passado meio século, eu permaneça vivo e saudável, em vez de já ter morrido de susto, de bala ou vício? É mistério demais para nossa vã filosofia. Ou, voltando ao mestre portenho: “Não existe uma só coisa no mundo que não seja misteriosa, mas esse mistério é mais evidente em determinadas coisas do que em outras. No mar, na cor amarela, nos olhos dos velhos e na música.”

Todos esses questionamentos indecifráveis atestam nossa condição de descobridores fracassados. Como consolo, aprendemos a cultivar descobertas deliciosamente prosaicas: cidades, canções, crepúsculos, sabores, idiomas, filhos, afetos, vinhos, desejos, livros, árvores, conversas e sonhos. Talvez seja essa a melhor maneira de tentar compreender o mistério e mitigar a dor da ignorância absoluta, já que não há mesmo sentido algum nessa história cheia de som e fúria, a não ser para os que se amparam na fé. Uma descoberta, afinal, acaba por se desvelar: a vida, desde que vivida em plenitude, é uma invenção sublime.