Deus lhe pague, Irmã Dulce

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  • Jaciara Santos

Publicado em 19 de setembro de 2019 às 10:28

- Atualizado há um ano

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A primeira vez em que estive com a hoje Santa Dulce dos Pobres, vivi uma experiência inesquecível. Repórter iniciante no Jornal da Bahia, fui escalada para uma matéria especial com ela. Não lembro exatamente o gancho da pauta, mas suspeito de que estivesse relacionada a uma data importante no calendário de sua vida religiosa. Ou teria a ver com o trabalho assistencial desenvolvido por ela?... Não sei responder. Tenho tentado resgatar esse texto, mas não obtive êxito em minhas buscas – até ao acervo das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) recorri, mas foi em vão. Embora correndo o risco de ser traída pela memória, julgo importante registrar o fato.

Então, como dizia, fui pautada para uma matéria com a protetora dos desvalidos e me desloquei até o bairro de Roma, sede da Osid. Salvo engano, o fotógrafo era Anízio Carvalho. Ao chegar, pouco depois das 8h, fomos informados de que a Irmã estava em ronda pelo hospital e pedia que lhe aguardássemos, que tivéssemos “um pouquinho de paciência”. Àquela altura, já contaminada pela arrogância de que são acometidos jovens repórteres, não escondi a insatisfação. Mas tive que encarar o chá de cadeira que ela nos impunha. Nem dava para furar a matéria: pelo que me lembro, era uma pauta de interesse da direção.

Mais de uma hora depois, enfim, surge nossa fonte. Franzina e miudinha, parece apressada. Diz que precisa continuar “vendo as coisas” e nos convida a acompanhá-la. Concordo, enquanto explico que estou ali para uma matéria sobre o trabalho, as obras sociais, o atendimento aos seus pobres... Sem demonstrar um pingo de interesse, ela responde algo como “falar o que sobre mim, minha filha?”. Antes que eu possa argumentar, ela emenda: “Vamos falar sobre o que meus velhinhos estão precisando?”. Fico meio sem graça e percebo de imediato: ela está à frente do placar, não vai ser fácil assumir o controle daquela entrevista.

Seguimos pelos corredores.

A um canto, aparentemente esquecidos, um balde com água suja e utensílios de limpeza não passam despercebidos. Imediatamente, ela chama uma funcionária para “ver isso aqui”.

Velhos e crianças - Entramos no que parecia ser a enfermaria geriátrica. Ela conhece os pacientes pelo nome e vai procurando saber como cada um deles está, como amanheceu, se já melhorou de determinado sintoma, se o apetite voltou... Olha o curativo de um, ajeita os lençóis de outro. Ouve as queixas de um terceiro.

Na ala reservada a crianças com deficiência, busca informações sobre a evolução de um bebê, ordena a troca de fraldas de outro, pergunta se o médico já esteve por lá e protagoniza uma cena que me marcou profundamente.

Havia na enfermaria um menino com hidrocefalia. Sobre o corpinho mirrado, se assentava uma cabeça desmesuradamente grande. Irmã Dulce se acerca do berço, pega a criança ao colo, se desmancha em carinhos e balbucios, arranca risos prazerosos do garotinho. E ri, ela que não era muito afeita a sorrisos em público.

A cena mexe comigo. Não consigo esconder a emoção. Ela me conta que o pequeno foi abandonado pela família, já esteve “desenganado”, mas, “graças a Santo Antônio”, está “firme e forte”. Enquanto conversamos, alguns funcionários se aproximam do menino e lhe fazem agrados. Ao que parece, o derramamento de afeto da freira contagia a equipe – aquela criança, de aparência incomum, é mesmo o xodó da enfermaria.

A visita e a entrevista ocupam toda a manhã. O tempo passa sem que eu me dê conta. Minha impaciência e pressa iniciais dão lugar a uma indescritível sensação de bem-estar. Naqueles momentos, senti de perto a energia que emanava de um corpo franzino, mas incansável, e constatei a total ausência de vaidade pessoal daquela que viria a ser (merecidamente) reconhecida como santa.

Estive em outras oportunidades com Irmã Dulce. Foram contatos mais rápidos e superficiais, registro de sua participação em eventos, pauta factual no Hospital Santo Antônio ou em outra das instituições mantidas pela Osid. Mas não me esqueço do primeiro encontro. Quem teve o privilégio de manter contato com ela, pode afirmar, sem sombra de dúvidas, que a Igreja demorou muito para reconhecer o que o mundo já sabia: Irmã Dulce é verdadeiramente uma santa. Que o digam os pobrezinhos e pobrezinhas a quem ela socorreu e continua socorrendo.

Com a gratidão de quem recebeu uma inesquecível lição de humildade naquele primeiro encontro, resta-me apenas dizer: “Deus lhe pague, Irmã Dulce!”.

Texto originalmente publicado no Facebook e replicado com autorização da autora