Devemos ter esperança?

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  • Paulo Sales

Publicado em 15 de julho de 2019 às 11:03

- Atualizado há um ano

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Poucas obras imergiram tão fundo no desconforto dos tempos que vivemos quanto The Handmaid’s Tale. Baseada no romance de Margaret Atwood, a série – cuja 3ª temporada já está sendo exibida – é uma distopia aterradora, que mostra os Estados Unidos transformados numa teocracia totalitária, Gilead. Um cenário que nos remete, em maior ou menor medida, a experiências que a humanidade teve e ainda tem de aturar em épocas distintas. Da Alemanha nazista à extinta União Soviética, do Irã pós-Khomeini a aberrações como o Talibã e o Estado Islâmico.

Em Gilead, execuções e punições inspiradas numa leitura enviesada da Bíblia são corriqueiras. Mulheres são divididas em castas e relegadas aos papéis de donas de casa, criadas e aias reprodutoras. June (Elisabeth Moss) é uma dessas aias. É o seu sofrimento extremo que acompanhamos ao longo das temporadas, e também o de outras mulheres que até então desfrutavam dos prazeres e da liberdade inerentes às sociedades ocidentais. A sucessão de momentos dolorosos fez a série ser acusada de misoginia e sadismo. Acho um exagero, mas as críticas parecem ter sido ouvidas. A nova temporada agora traz um fiapo de esperança, de que é possível acordar do pesadelo. A série The Handmaid's Tale (Foto: Reprodução) Mas, tanto na série quanto no mundo contemporâneo que ela de certa forma reproduz, a pergunta que fica é: vale a pena ter esperança? Afinal, vivemos tempos que trazem de volta cadáveres insepultos. Eles se manifestam, por exemplo, na fala de um líder político que condenou a capitã de um barco por ter atracado à força em terra firme para salvar vidas de náufragos. Ou, num exemplo de igual gravidade, no comentário de outro líder relativizando a desumanidade do trabalho infantil, como antes já havia relativizado o sofrimento de pessoas torturadas numa ditadura. A história já nos mostrou no que podem dar discursos como esses e outros em voga no mundo, mas até mesmo a história vem sendo contestada (assim como a ciência, como mostram os intrépidos terraplanistas).

Numa linda crônica escrita há muito tempo, Verissimo cunhou o neologismo “oniricídio”, ou genocídio dos sonhos. Talvez estejamos vivendo esse oniricídio. Já parecia claro que não havia mais espaço para utopias. De certa forma, elas têm um papel deformador, de nos deixar invariavelmente insatisfeitos com a realidade. Mas ao menos traziam a tiracolo um senso ético, uma aspiração ao bem-estar coletivo. É o contrário do mundo distópico atual, apregoado por pessoas que concentram enorme quantidade de poder e reverberado por seus seguidores: o desequilíbrio climático tratado como falácia, a absoluta rejeição às ideias humanistas, o desprezo pelo conhecimento acumulado em milênios.

Voltando à pergunta que fiz acima, acho que devemos, sim, ter esperança. Porque haverá sempre uma capitã de navio para desafinar o coro, jogar massa fecal no ventilador, rebater estupidez com sabedoria. Sim, meus caros: tanto em The Handmaid’s Tale como no nosso bravo mundo real, é preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer os tolos.