Documentário conta história da ocupação LGBTQIA+ na Rua Carlos Gomes

Documentário será lançado no site e redes sociais da Dois Terços, gratuitamente

Publicado em 2 de março de 2022 às 09:13

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Divulgação

Marcelo Sousa Santos ainda é um homem jovem, com seus 25 anos de vida recém-completados. Há pouco mais de cinco anos, reuniu coragem para contar aos pais sobre sua sexualidade: Marcelo é um homem gay. Neste mesmo ano, uma moça com mesma idade e nome parecido tomou exatamente a mesma decisão. Marcela Santana, 25, contou aos pais, pastores de uma Igreja Evangélica de Salvador, que é uma mulher lésbica.

As coincidências entre os dois não param por aí, já que ambos creditam a uma das ruas mais conhecidas do Centro Histórico de Salvador parte da força que reuniram para ser quem são e amar quem bem entendem: a Rua Carlos Gomes, protagonista de um documentário que será lançado na próxima quinta-feira (4) e que fala da cena LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais e outras identidades de gênero e orientações sexuais que não se encaixam no padrão cis-heteronormativo) dos anos 1980 e 1990 daquele lugar, uma época em que a sigla, com versões que já chegam a 52 letras, era resumida a GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) - termo em desuso.

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O documentário batizado de “Rua Carlos Gomes: Apogeu e resistência da comunidade LGBTQIA+" foi idealizado pelo maquiador e drag, Galdino Neto, com consultoria e pesquisa do ativista Genilson Coutinho, promete reunir notáveis histórias da região.  Rua Carlos Gomes durante a noite (Foto: Genilson Coutinho) Entre os nomes que foram entrevistados para o projeto estão: André Luiz Silva (Bagageryer Spilberg), Dion Santiago, Fabiane Galvão, Sérgio Augusto Duarte Tavares (Lion Schneider), Valécio Santos (Valerie O'rarah), Antônio Fernando (Âncora do Marujo), Livia Ferreira (UNALGBT da Bahia), Antônio Jorge (Boate Is'Kiss) e Genilson Coutinho. Cada um compartilhará relatos de vivências e experiências.

Com duração de 1 hora, o documentário será exibido no dia 3 de março no perfil do Instagram (@doistercos)e no YouTube do site Dois Terços, veículo de notícias LGBTQIA+ de Salvador que há 13 anos tem sido uma voz importante da comunidade.

Marcelo e Marcelo não alcançaram o apogeu da rua, com equipamentos culturais diversos a exemplo do Bar Charles Chaplin, Beco da Baiúca, Adê Alô, Boate Is'Kiss, Âncora do Marujo, Artes & Manhas, Boate BRW, Boate Caverna, Bar Cabaré 54, Bar Caras e Bocas, Freedom Music & Bar, Bar Champagne (Bar da Ray) e Bar Pérola Negra. De todos estes ambientes, a Âncora é a única que eles frequentaram.

"Lá dentro conheci uma série de pessoas mais velhas, que falavam dessa história da Carlos Gomes. O fato é que quando comecei a frequentar aquele lugar, escondido de meus pais, consegui abrir um universo em que não me culpava por ser quem eu sou e por amar as pessoas que amo. Foi libertador", contou Marcelo, que disse que chegou à Âncora depois de ir a festas na antiga boate Amsterdam, nos Aflitos.

O documentário é uma oportunidade para que novas gerações conheçam o local que foi literalmente ocupado por esse público, marginalizado na estrutura social, e encontravam, ali, não apenas um, senão uma infinidade de ambientes seguros. Dino Neto relembra que não era muito comum, por exemplo, ver as pessoas se beijando, mas os ombros próximos, as mãos dadas e os olhares de tranquilidade indicavam para jovens como ele, hoje com 54 anos, que ali havia algo diferente."Não foi a Prefeitura ou Governo do Estado quem decidiu, fomos nós mesmos que íamos até lá e transformamos o espaço num reduto LGBT. Me aproximei da Carlos Gomes aos 18 anos, depois de ver uma apresentação de Dion [Santiago] na Boate Tropical, que ficava perto da Rua Chile. Quando o vi pela primeira vez, vestido de mulher, fiquei encantado e a partir dali fui conhecendo mais e mais", lembrou Dino.Ainda de acordo com Dino, o documentário é uma ferramente importante para traçar paralelos entre o passado e o presente. Ele acredita que a Bahia contemporânea, e o Brasil como um todo, sofre muito com a violência contra pessoas LGBTQIA+. Situações bem diferentes da cidade de 30, 40 anos atrás - que já era preconceituosa.

"A gente saía maquiado de um lado pro outro, de um bar pra outro, de uma boate pra outra e não tinha essa coisa de matar a pessoa por ser LGBT. Volta e meia tinha idiota fazendo piadinha, tinha muita situação de assalto, mas essa é uma violência completamente distinta da de hoje", recorda.

Ele completa: "A vida e a magia dos anos 1980 e 1990 não voltarão, mas não podemos deixar que a nossa história seja esquecida, pois a vida cultural da população LGBTQIA+ também movimentava a economia desta via. A prova de que nós mantínhamos a chama de estabelecimentos não gays é o fato de eles terem sumido junto com a nossa história. Muitos desses estabelecimentos sobreviviam com o pink money”.

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Também idealizador do projeto, Genilson Coutinho afirmou que é emocionante conseguir levantar todos os depoimentos e, de antemão, reconhece que não conseguiram dar conta de uma história tão gigantesca quanto a da Rua Carlos Gomes em duas décadas.

"É bacana para que as pessoas pensem: minha cidade tem uma história e o público LGBTQIA+ tem uma história, rica e pronta para ser contada", afirmou Genilson, que também contou que uma das motivações para fazer o documentário foi o de criar o hábito de contar a história da comunidade e mostrar a importância que ela tem para a dinâmica da cidade.

De todos esses empreendimentos dos tempos áureos, apenas o Bar Âncora do Marujo sobrevive ainda hoje, no auge dos seus 22 anos de história. Seu último parceiro dos velhos tempos, o Bar da Ray fechou as portas em agosto de 2021 devido à falta de investimentos em infraestrutura e segurança.  Dion, Lion Shineider e Marquesa (Foto: Arquivo pessoal Lion) O que permanece, no entanto, é um grande saudosismo por parte do público. E esse sentimento é objeto sobre o qual o documentário pretende retratar como forma de homenagear um local icônico para a história do movimento LGBTQIA+ na Bahia. 

*Glossário LGBTQIA+

Lésbicas –  Mulheres que sentem atração afetiva/sexual por outras mulheres; 

Gays –  Homens que sentem atração afetiva/sexual por  outros homens; 

Bissexuais – Pessoas que sentem atração afetivo/sexual por homens e mulheres; 

Travestis, Transexuais e Transgêneros –  Não se relaciona com a orientação sexual, mas   identidade de gênero. Corresponde às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento; 

Queer – Pessoas que não se identificam com os padrões cis e heteronormativos;

Intersexo –  Pessoas cujas combinações biológicas e desenvolvimento corporal – cromossomos, genitais, hormônios, etc. – não se enquadram na norma binária (masculino ou feminino); 

Assexuais – Pessoas que não sentem atração sexual por outras pessoas;

Interseccionalidade –  Estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação;

Cisgênero – Pessoas que se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento;

*Fonte da pesquisa: Educa Mais Brasil