Dona Censura, essa nefasta, pérfida e vil criatura

Já nesta década, os mais perspicazes puderam a voltar a sentir o mau-hálito da censura. As redes sociais potencializaram essa tendência nefasta

Publicado em 21 de abril de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Nos quatro anos do curso ginasial duas personagens entraram em (minha) cena. Anita e Diva. Magras, baixas, quase sem ancas e seios, andavam sempre a galope. Anita tinha franja e cabelos cor de cobre cortados como se fossem a faca. Profissão: censoras. Missão: vigiar, flagrar, observar  o que fazíamos e como agíamos na escola. Não lembro se usavam fardas. Não precisariam. Eram as próprias fardas.

Estavam em todos os lugares, e se esgueiravam feito lagartixas. Na época exigia-se nota em ‘comportamento’. Eu era bem comportado. Sempre tirava 10. As censoras nunca se meteram comigo. Mas um dia se meteram. No intervalo entre aula e outra às vezes eu preferia permanecer sentado, reflexivo, em minha carteira a ir brincar.

Olhei para os lados – soltei peido alto – libertador – e relaxei. Anita – ou teria sido a maldita Diva? – de tocaia na porta da sala, apareceu e berrou: - Não te dão educação em casa? Não te ensinaram que quando se faz ‘isso’ se deve ir ao banheiro e trancar a porta? Deu-me piparote na cabeça e se escafedeu. Chorei – chorei muito – e passei a odiar todas as censoras do mundo. [Quatro quintos da minha vida vividos, contados na ponta do lápis, meu ódio por censores e censuras quadruplicou].

Na juventude, censores contratados pela ditadura militar mandavam e desmandavam no que se podia ler nos livros, nas notícias dos jornais e revistas – ver nos palcos de teatro – e assistir nos cinemas. Havia jornal  chamado O Pasquim – escrito e editado pela fina e ácida flor da intelectualidade carioca, e que eu amava de paixão – e o amava ainda mais a cada vez que impediam a publicação de algum texto ou não deixavam edição inteira do jornal chegar às bancas.

[A História não para nem nunca parará – a ditadura militar foi derrubada depois de 21 anos pendurada nas mamatas do poder – e a liberdade de expressão e de opinião e o direito de se ler e ver o que quisermos, voltaram a virar rotina – como é usual em democracias].

Já nesta década, os mais perspicazes puderam a voltar a sentir o mau-hálito da censura. De maneira sutil, virtual. As redes sociais potencializaram essa tendência nefasta. Munidas de ‘entidades diabólicas’ – que mortais comuns não temos a menor ideia de como funcionam – chamadas algoritmos, nos escarafuncham por dentro e por fora, nos robotizam e nos abduzem. Vontade própria? Cadê? Onde? Segredos que nem às paredes confesso? Acabou. Sabem de tudo, controlam nossos hábitos, gostos, fobias. [Neste macrocosmo controlador no qual nos enfiamos censura virou ‘detalhe’].

Então, a surpresa. A censura, essa senhora nefasta pérfida e vil, volta a dar as caras a bordo de modus operandi bastante antiquado. Um dos poderes da república proibiu a publicação de certo texto em sites jornalísticos. [Alguém se sentira ofendido].

Essa moda não pode voltar a pegar como se fosse peça de vestuário vintage. Viver em mundo real-virtual no qual algoritmos são nossa segunda pele – e mais suportar Estado esfacelado controlando o que podemos acessar – é o apocalipse em pessoa, meu sinhô!]. [Vade retro!]