‘E agora?’ é a pergunta que foi deixada pela Ford

Saída de montadora é passo atrás em processo de diversificação da indústria na Bahia

  • D
  • Daniel Aloisio

Publicado em 13 de janeiro de 2021 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Tiago Caldas

Darleide Santos de Sá, 52 anos, entrou na Ford em 2002, um ano após a fábrica se instalar em Camaçari. Desde então, adquiriu uma lesão por acidente de trabalho e viveu dias que classifica como de “dores e alegrias”. O que ela não esperava é que a relação tivesse esse fim.  A sensação era a de perder um ente querido. Ela foi uma das muitas centenas de trabalhadores que estiveram ontem na fábrica em busca de uma resposta sobre o seu futuro profissional, diante de um problema que impacta muito mais do que os 12 mil profissionais da montadora e das suas sistemistas. 

O Complexo Ford Nordeste se tornou relevante para a economia baiana como um todo e o “E agora?” estende-se além dos trabalhadores que precisam de recolocação. Governos vão perder receitas em um momento complicado pela pandemia do novo coronavírus. O o setor de comércio e serviços também – tanto o que tinha relação direta com a operação da indústria automobilística, como transporte, a alimentação dos trabalhadores e a cadeia logística, quanto o afetado positivamente pela renda dos trabalhadores. 

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Em 2006, no seu auge, a Ford chegou a representar 10,5% da indústria de transformação na Bahia. Mesmo após anos de dificuldades na última década, o fechamento da empresa no estado representa uma perda em torno de 3,5% deste indicador, 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) da cadeia automotiva, além dos empregos, com um impacto total entre R$ 5 bilhões  e R$ 6 bilhões em toda a cadeia produtiva. 

Apesar da crise, a indústria automotiva representava a quinta cadeia de produção da indústria baiana, atrás apenas do refino de petróleo, produtos químicos, alimentos e celulose. Além disso, a indústria automotiva representava pouco mais de 6% das exportações baianas nos tempos áureos. Mesmo em 2020, diante de todas as dificuldades enfrentadas pelo setor, 2,1% das vendas externas foram desta indústria. 

Desde os anos 50, intelectuais discutiam o chamado “enigma baiano”. A expressão foi criada alguns anos antes pelo ex-governador Octávio Mangabeira. O economista Gustavo Pessoti, vice-presidente do Conselho Regional de Economia na Bahia (Corecon-Ba) lembra que a chegada da Ford à Bahia em 2001 foi a consolidação de um sonho. “Era uma indústria produtora de bens finais. Historicamente a Bahia sempre padeceu de um problema chamado enigma baiano, que era um problema de involução industrial”, lembra. O estado não conseguia evoluir, dar um salto de qualidade na produção industrial e em sua participação no Produto Interno Bruto (PIB). 

“Você tem a concretização de um sonho em 2001”, lembra. “Consolidou um parque industrial no Nordeste. Foi um momento de grande crescimento econômico porque a Ford impactou a indústria na Bahia”. Pessoti lembra que em 2003, o estado teve um crescimento econômico “magistral”, alcançando o auge em 2005, com mais de 250 mil veículos produzidos. “A chegada da Ford trouxe uma euforia muito grande e portanto agora é um momento de grande frustração, de voltar ao passado e perguntar o que é que acontece com a economia da Bahia”, diz. 

O economista destaca que a movimentação da montadora não tem qualquer relação com o momento de pandemia. “Ao passar dos anos, principalmente nesta última década, a indústria automotiva representava 7,5% da indústria de transformação no estado. Em todos os anos depois disso houve perda de participação, aí em 2019 a participação era de 3,5%”, destaca. Segundo ele, a estimativa é que em 2020 essa participação tenha caído para 1,8%. “Era óbvio que esta companhia estava sangrando”, lamenta. 

Ele lembra ainda que não dá para falar apenas sobre a indústria automotiva em si, mas sobre toda uma cadeia de produção que envolve uma série de atividades, desde serviços e outras atividades industriais até a movimentação portuária. “Todas as relações que uma indústria gera dentro da cadeia produtiva tem impacto de até 2% do PIB”, destaca Pessoti. A estimativa dele é de algo entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões. “Ainda tem coisas piores. Claro que quando você diminui nossa produção doméstica, desacelera outras indústrias. Como vão ficar outras empresas e prestadores que se relacionam com esta atividade?”, questiona. “Essa indústria era responsável por um determinado número de empregos, você tem uma perda na massa de salários. É uma indústria que pagava bons salários e que movimentava o entorno da Região Metropolitana de Salvador. Deixa de movimentar universidades, shoppings, praças comerciais diversas. Evidentemente que o impacto é muito maior que o número”, acredita. Efeito multiplicador Além dos números em si, ainda é importante lembrar o efeito multiplicador de uma indústria diversificada e os prejuízos neste sentido que o fechamento traz. Apesar da amplitude dos números, Ricardo Kawabi, gerente de estudos técnicos da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb), acredita que eles não explicitam o tamanho do impacto. “Para a nossa tristeza, o impacto negativo desta notícia vai além das perdas no PIB, na participação da indústria e vai além até das vagas de trabalho encerradas diretamente pela Ford”, avalia. 

Para Kawabi, a Ford, assim como o conjunto da indústria automobilística, vinha sofrendo com as mudanças nos sistemas de transportes. “Além de todas as mudanças tecnológicas em curso, há uma enorme mudança social. Ter um carro, que antes era um sonho para a maioria dos jovens, deixou de ser algo tão atrativo”, acredita. Ele avalia que alguns anos trabalhando com capacidade ociosa, somados a questões estruturais da economia brasileira que elevam os custos de produção, mais a conjuntura da pandemia, explicam a decisão da montadora. “É algo muito triste, que pegou todo mundo de surpresa. A melhor solução que eu consigo visualizar seria uma outra empresa do ramo assumir a operação”, avalia. 

Mas a solução neste sentido está longe de ser simples. A própria direção da Ford disse em comunicado que tentou encontrar parceiros, ou mesmo compradores para a sua operação no Brasil, sem sucesso nesta tentativa. 

Despedida Choro, dor e revolta compunham um dia que oscilou entre nublado e chuvoso ontem em Camaçari. “Eu já estava afastada em lay-off (com o contrato de trabalho suspenso). Todos os lesionados foram afastados durante a pandemia, mesmo sem ser do grupo de risco”, lembra. “Foi uma notícia indesejada que abalou a gente. Fechar a fábrica gera uma cadeia de desemprego muito grande”, lamentou a operadora.  

A lesão foi causada por um acidente na empresa. “Tive que realizar duas cirurgias no ombro e no punho esquerdo e ainda tinha uma terceira a fazer, mas não sei como vai ser agora, pois perderemos o plano de saúde”, disse. Darleide é moradora de Camaçari, do bairro de Ponto Certo, onde é vizinha da prima Lilia de Sá, 41 anos, que também trabalhava na Ford.  

“O fato dessa demissão ser na pandemia é muito mais doloroso. Deixar uma empresa dessa fechar, a primeira do ramo no Brasil, é muito triste. A gente via que essa fábrica tinha um grande potencial. Demos muito sangue, passamos por altos e baixos, mas nunca desistimos deles”, disse a funcionária.  

Para muitos funcionários, não era só um emprego, mas o local onde vidas foram construídas.“Nossa, a gente amadureceu aqui, viu? Entramos novas, tivemos filhos, casamos, fizemos toda a nossa vida. Realizamos muitos sonhos trabalhando nesse lugar”, disse emocionada Naiane Prado, 40 anos, ao lado da melhor amiga Marcia Santos, 41 anos.  Elas entraram juntas na Ford assim que a empresa iniciou o terceiro turno, na madrugada. “Era um sonho estar aqui. Nós realmente nos sentíamos realizadas. Ajudar a montar um carro e ver ele na rua era uma sensação tão boa. A gente dizia para as pessoas 'fui eu quem fiz'. Nossa ficha não caiu e a sensação é de luto. Estamos recebendo a notícia de uma morte que parece não poder ser evitada”, comparou Naiane.  

O consolo das amigas são os 17 anos de experiência na empresa, que elas acreditam ajudá-las a conseguir um próximo emprego. O mesmo pensa Daniele Brito, 27 anos, que entrou na indústria automobilística com 18 anos, assim que concluiu o ensino médio. “Comecei como aprendiz estagiária, depois passei para assistente e me tornei analista. Com o salário ajudei minha família, paguei cursos de especialização. Estou concluindo agora minha faculdade particular de administração”, conta. “Ainda não sei o que vai ser da minha vida, mas vou correr atrás, atualizar o currículo e buscar um novo emprego”, relatou a jovem, que não trabalhava diretamente na Ford e sim numa empresa sistemista – que só produzia peças para a montadora e que também vai ser fechada com a decisão. 

Aposentadoria   Quem já estava perto de conquistar a aposentadoria projeta dificuldades para conseguir um novo emprego. É o caso do operador de produção Francisco Roberto, que se emocionou ao falar sobre a demissão. “É muito dolorido, perto de se aposentar. Sustentava filhos e até a mãe com esse trabalho. A Ford era a minha segunda casa, pois eu passava mais tempo aqui do que em outro lugar”, lembrou o profissional. “É muito difícil pensar em como vai ser nosso futuro daqui pra frente. A pandemia torna tudo mais difícil. A gente só espera que passe”, concluiu.  

Dentro da categoria, há ainda quem espera que a decisão seja revertida e os empregos não sejam perdidos.“A gente já imaginava que algo do tipo poderia acontecer por questões econômicas, mas não achávamos que seria tudo de uma hora para outra. Para conseguir um emprego vai ser bem complicado, então estou rezando para que a Ford desista de sair. Tinha o sonho de estar aqui, montar carros. Quero continuar”, explicou o operador logístico Romilson Santana, 44 anos.  O amigo Cícero Silva, 54 anos, lamentou a forma como todos foram noticiados da demissão. “Estava indo ao mercado na hora quando um amigo me avisou, disse que a notícia estava correndo no mundo todo. Quando cheguei em casa, vi que era verdade”, lembra. O último dia de trabalho foi na sexta-feira (8). Na segunda-feira, quando anunciou o fim da operação, a Ford não funcionou, pois tinha negociado com os trabalhadores o remanejamento do feriado de São Thomaz de Cantuária, padroeiro de Camaçari.  

Transformações O anúncio de fechamento das fábricas da Ford no Brasil foi um choque e uma surpresa para quase todo mundo. Quem acompanha mais de perto esse mercado, porém, não se surpreendeu tanto assim. Os analistas dizem que a indústria automobilística vem tentando se reinventar no mundo todo, e uma das alternativas é focar nos veículos elétricos e híbridos. A corrida para chegar a produtos viáveis nos mercados globais está deixando para trás empresas e países que entraram tarde, ou ainda nem participam dessa disputa avalia Cássio Pagliarini, da Bright Consulting.

Esse processo exige elevados investimentos e, no caso da Ford, tudo indica que a matriz não quis ter esse gasto no Brasil. 

“Está faltando uma orquestração política no setor”, diz Pagliarini, que foi funcionário da Ford por 25 anos. Em sua opinião, “há um perigo muito grande” de outras montadoras seguirem a decisão da Ford. “Temos muita capacidade instalada e não cabem tantas fábricas, aqui e no mundo”, afirma.

Bolsonaro critica empresa: 'faltou dizer a verdade'

O presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem a apoiadores que a Ford não disse o que, na sua opinião, seria o real motivo para a montadora fechar suas fábricas no Brasil. "Mas o que a Ford quer? Faltou à Ford dizer a verdade: querem subsídios. Vocês querem que continuemos dando R$ 20 bilhões para eles como fizemos nos últimos anos, dinheiro de vocês, impostos de vocês, para fabricar carro aqui?", questionou. Na sequência, ele próprio respondeu: "Não. Perdeu para a concorrência, lamento".

O presidente, no entanto, não explicou se a montadora pediu novos subsídios para manter a operação no país. Fontes do Ministério da Economia afirmaram, sob a condição de anonimato, que a saída da empresa faz parte de um movimento global e não está relacionada à frustração de políticas de incentivo. Nem a empresa nem a Anfavea, associação que representa o setor, se pronunciou sobre as declarações do presidente.

O anúncio acabou colocando em debate a concessão de bilhões de incentivos tributários para a indústria automobilística. Dados do Ministério da Economia apontam que os incentivos tributários para os fabricantes de automóveis atingiram R$ 43,7 bilhões entre 2010 e 2020. Até 2017, os incentivos contabilizados – R$ 25,24 bilhões – correspondem à base efetiva apurada. Nos três anos seguintes (2018, 2019 e 2020), os dados são projeções.

Bolsonaro rebateu as críticas de que seu governo não fez nada para manter a montadora e disse que “em um ambiente de negócios, quando não se tem lucro, se fecha”. “Assim é na vida e na nossa casa”, completou o presidente.

Já o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse que os argumentos da Ford para deixar de produzir carros foram “meio fracos”. A empresa fala em perdas significativas nos últimos anos, agravadas pela pandemia. Em conversa com jornalistas pela manhã, ele reconheceu as dificuldades enfrentadas pelo setor automobilístico, mas avaliou que o mercado brasileiro teria condições de se recuperar. Mourão repetiu que a Ford ganhou “bastante dinheiro” no Brasil e, a exemplo de Bolsonaro, destacou que ela recebeu incentivos ao longo dos anos em que atuou no País.“A gente entende que no mundo inteiro a empresa está passando por problemas. A indústria automobilística está passando por problemas. Está havendo uma mudança”, disse na chegada à Vice-Presidência.O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cobrou explicações à Ford na segunda-feira (11) sobre a decisão de fechar as fábricas e afirmou que não foi avisado. Em nota, o BNDES informou que a companhia possui dois contratos de financiamento que somam R$ 335 milhões e foram contratados em 2014 e 2017. Os financiamentos, disse a instituição, já passaram da metade do prazo total e estão com “pagamento em dia”.

O governador baiano Rui Costa disse que não acredita que a ausência de um novo incentivo tenha motivado a decisão da Ford. “Estamos falando de uma situação macroeconômica que torna inviável a produção industrial, não só para a Ford”, retrucou, em resposta a Bolsonaro. O petista disse que a indústria requer cada vez mais tecnologia, mas sofre com os custos de importação desses equipamentos no Brasil, por conta da alta do dólar.

Rui Costa afirmou que já entrou em contato com representantes da China, Índia, Japão e Coreia do Sul para oferecer a fábrica da Ford em Camaçari, que será fechada. De acordo com ele, a montadora americana também mostrará as instalações a outra montadora global. Apesar disso, ele mostrou ceticismo e não acredita em uma solução de curto prazo para as instalações que, fechadas, deixarão de injetar R$ 500 milhões por mês em salários diretos e indiretos na economia baiana.

“A Ford já chegou a verbalizar que já tem negociação, diálogos abertos com outras montadoras globais, mas que eles teriam asinado protocolo de sigilo e que não podiam divulgar nenhuma informalção, mas há diálogo aberto para que outros investidores conheçam a planta”, afirmou. Procurada, a Ford preferiu não se pronunciar sobre a fala do governador.

O prefeito de Salvador, Bruno Reis, lamentou a decisão da empresa e colocou a Prefeitura à disposição para colaborar com uma solução.“Não poderia ter pior notícia para esse início de ano, onde o nosso maior desafio após a pandemia do coronavírus será enfrentar o desemprego. Muitas pessoas que trabalham na Ford moram aqui em Salvador ou utilizam os serviços daqui. Isso é ruim para a economia da cidade. Espero que o governo federal, o governo do estado e o congresso nacional possa se mobilizar para evitar isso ou trazer logo uma outra alternativa. Se Salvador puder colaborar, eu estou a disposição”, disse. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), usou o exemplo do encerramento das atividades da Ford no Brasil para falar sobre a urgência da reforma tributária. “Quando decidem sair do Brasil e continuar na Argentina e Uruguai merece um ponto de interrogação sobre o porquê disso”, questionou.“Como um país da importância do Brasil é preterido por dois países importantes, mas que não têm a dinâmica econômica daqui?”, questionou. O economista Guilherme Dietze, consultor da Fecomércio-BA destacou o impacto da situação para o estado e destacou a necessidade de melhorias no ambiente de negócios. “Isso traz uma reflexão para o país de que há a necessidade imediata da revisão da carga tributária excessiva, além de uma maior segurança jurídica e econômica, para que o Brasil não perca mais investimentos, e consiga por outro lado atrair mais recursos para geração de emprego e renda”, destacou.

A IndustriAll Brasil, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical afirmam, em nota, que a saída da montadora seria consequência da ausência de um projeto de reindustrialização do País por parte do governo do presidente da República, Jair Bolsonaro.“É incontestável a desconfiança interna e internacional e o descrédito quanto aos rumos da economia brasileira com este governo que aí está. Não se toma uma decisão empresarial como essa sem considerar a total incapacidade do governo Bolsonaro”, sustentam as entidades.“No momento em que a indústria automobilística global passa por uma das mais intensas ondas de transformação, orientada pela eletrificação e pela conectividade, assistimos à criminosa omissão, e até boicote, do subserviente governo brasileiro à indústria, com consequências nefastas para a classe trabalhadora”, escrevem as entidades.