É isto um homem?

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  • Paulo Sales

Publicado em 19 de outubro de 2020 às 05:15

- Atualizado há um ano

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Houve um tempo em que os homens vagavam por terrenos sem dono em busca de comida, água e abrigo. O mundo não pertencia a ninguém. Era um campo vasto e inóspito a ser desbravado e conquistado. Mesmo nesse tempo tão remoto, o homo sapiens já destruía tudo ao redor, promovendo a extinção em massa de grandes aves, árvores e mamíferos, incluindo aí as outras espécies humanas que coabitavam o planeta. Nesse processo, destruiu também a própria liberdade. Os caçadores-coletores, nômades com tempo disponível para o ócio, o amor e a criação dos filhos, deram lugar aos agricultores, escravos da lavoura, da vida em sociedade e do excesso de trabalho.

Muito do que somos hoje, mesmo com toda tecnologia e conforto proporcionados pela civilização, permanece igual a esses tempos. Sobretudo a brutalidade no trato com os animais domésticos e o pendor para reduzir florestas a carvão. Sem falar no quanto ainda prosseguimos massacrando membros da nossa espécie. A indagação de Primo Levi em seu livro mais conhecido – “é isto um homem?” – pode ser aplicada tanto a genocídios ocorridos há 9.500 anos a.C quanto ao holocausto de apenas 75 anos atrás.

Seríamos então, como espécie, intrinsecamente maus? Ao ler Sapiens, o envolvente tratado do historiador israelense Yuval Noah Harari, tendo a crer que sim: somos maus, essa é a nossa essência. Por outro lado, creio que uma parte significativa de nós gasta boa parte da vida tentando provar que não somos apenas fúria, torpeza e estupidez. É como se as sinfonias, a compaixão, a literatura e o perdão construíssem lentamente uma parede refratária ao nosso próprio mal. Ou seja: a cultura, aliada aos nossos melhores sentimentos, nos salva parcialmente do breu da barbárie.

Será mesmo? A leitura de Sapiens tem me provocado alguma desolação diante da nossa capacidade ancestral de dizimar algo muito raro e precioso – afinal, não há nada igual por perto num raio de milhões de anos-luz. Nossa solidão no espaço e nossa insignificância diante de distâncias intransponíveis, explosões de estrelas e buracos-negros é avassaladora, mas relativa. Afinal, aqui estamos: estudando o cosmos, construindo estações espaciais e deixando Ilíadas e Odisseias como legado de uma passagem ainda curtíssima.

O mais estranho de toda essa trajetória é não poder sequer vislumbrar o passado. Pedaços de ossos e ferramentas rudimentares não traduzem o olhar de um neandertal diante dos cadáveres ao redor, mortos por um bando de homo sapiens. Ou o grito primal do último mamute ao cair numa armadilha e despencar de um penhasco. Ou, como descreve Harari:

“Esses longos milênios podem muito bem ter testemunhado guerras e revoluções, movimentos religiosos arrebatadores, teorias filosóficas elaboradas, obras artísticas incomparáveis. Os caçadores-coletores podem ter tido seus Napoleões governando impérios da metade do tamanho de Luxemburgo; Beethovens dotados, carentes de orquestras sinfônicas, mas capazes de levar as pessoas às lágrimas com o som de suas flautas de bambu; e profetas carismáticos que revelavam as palavras de um carvalho da região em vez das de um deus criador universal. Mas isso tudo não passa de conjectura. A cortina de silêncio é tão espessa que não podemos nem mesmo ter certeza de que tais coisas ocorreram – que dirá descrevê-las em detalhe”.

A verdade é que nunca saberemos de onde viemos, quem somos ou para onde vamos. Prosseguiremos, monstros primitivos, tentando compreender o que é essa coisa intensa, breve e brutal como uma avalanche, a que chamamos vida.