E o resto é silêncio

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  • Kátia Borges

Publicado em 14 de agosto de 2021 às 07:01

- Atualizado há um ano

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No último domingo passei o dia fora. Do poema que fiz para o meu pai. Da impressão de que o tempo dá voltas. Penso no que ele diria agora, rigoroso que sempre foi com tudo que envolvia regras. Quando fizeram racionamento de luz, comprou uma caderneta para anotar os números registrados no voltímetro.

As lembranças ruins espanto com suas desajeitadas tentativas de arrumar as coisas entre nós, meu pai. Em pé no ponto de ônibus com o guarda-chuvas aberto, me esperando chegar do trabalho em meio ao temporal. Me ensinando a fazer embreagem na ladeira, quando comprei o primeiro automóvel.

Lá do seu jeito bem que desejava um abraço, um gesto que simbolizasse algum perdão. Perdão nenhum, pai. Tudo passou, tudo seguiu. E se hoje conto um pouco de sua história, só recordo o que aprendi a amar. Sua paixão pelo samba e pelo boxe. Levo de herança. Beatles, a maior banda do mundo.

E a introdução ao universo de Martin Luther King. Por uma razão pessoal, como estava escrito nos quadros da Sorveteria da Ribeira, o lugar onde íamos aos domingos como família, comer sorvete de taboquinha e olhar o mar até que as luzes do subúrbio se acendessem na outra margem.

Perdão nenhum pai, perdão para nós dois, que também eu te devo alguns. E se penso hoje em nossos dias juntos, são as pequenas coisas que revolvem a terra fértil onde tudo ainda cresce nesse jardim infinito. Seus pocket-books de faroeste. Madrugadas vendo os desfiles das escolas do Rio.

E o fato de que um dia disse, como um boxeador exausto, que a velhice lhe tirou as forças para o ringue. Não brigue mais, meu pai, eu quis dizer. Quis ser a sua voz quando lhe faltou o grito. Mas é que somos tão iguais. Na eloquência da revolta e no silêncio incômodo. Sempre disfarçando o amor que sentimos.

Ensimesmados, sob o mesmo signo, esse saturno em nós. Minha irmã diz que sente saudade de ser filha. É o que sinto. O perfume do mar, os peixes fritos, as viagens improvisadas de madrugada, é o que guardo de nós. Mágoa não há, só essa certeza: sermos falíveis. O resto é silêncio, como em Shakespeare.

 Kátia Borges é escritora e jornalista