'É uma vitória dos movimentos feministas', diz pesquisadora argentina, sobre legalização do aborto

Argentina sancionou a lei que permite a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação no último dia 14

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  • Thais Borges

Publicado em 24 de janeiro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: A professora María Alicia Gutiérrez é integrante da campanha nacional que mobilizou mulheres pelo país (Foto: Acervo pessoal e Shutterstock)

No último dia 14 deste mês, a Argentina deu um passo à frente na caminhada pelos direitos sexuais e reprodutivos: o presidente Alberto Fernandéz sancionou a lei que permite a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação no país. A lei tinha sido aprovada pelo Senado argentino em 30 de dezembro, após uma intensa mobilização de milhares de mulheres da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. 

Criada em 2005, a campanha tem sido chamada de ‘maré verde’, em alusão aos lenços verdes usados pelas mulheres nas manifestações. Uma das integrantes da campanha é a professora argentina María Alícia Gutiérrez, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires. “Essa lei tem a ver com a grande tradição de luta do movimento de mulheres e do movimento feminista argentinos. É um processo que transcende a partidos políticos”, diz.Em entrevista ao CORREIO, por telefone, esta semana, ela falou sobre o percurso e o contexto que permitiram essa aprovação na Argentina agora. 

A campanha pelo aborto legal existe na Argentina há algum tempo. Como ela se desenvolveu até aqui? Poderia nos ajudar a entender o movimento cronologicamente? 

A luta por aborto legal na Argentina começou muito cedo, ainda nos anos 70. Mas depois da transição democrática, em 1983, com as lutas pelos direitos humanos, esse tema começa a ter mais lugar de importância. Foi criada a comissão pelo direito ao aborto e começam os encontros nacionais de mulheres. O primeiro foi em 1986 e, desde então, acontece todos os anos em lugares distintos no país, com mulheres de todos os cantos, sobre direitos sexuais e reprodutivos. 

Essa luta se intensifica nos anos 90 com a participação da conferência internacional de direitos humanos, já que os direitos sexuais e reprodutivos aparecem como direito humano básico. Começam a ser formar as organizações que lutam pelo aborto e, em 1994, elas lutam na reforma constitucional para que nao entrasse na Constituição a cláusula que define origem da vida desde a concepção. 

Esse movimento de mulheres foi muito importante, muito diverso. Em 2001, há uma grande crise econômica na Argentina, e há lutas em fábricas sobre a crise econômica e política. Nessas assembleias, nós, feministas, introduzimos a questão do aborto. Então, em 2005, se constitui a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuto. Essa campanha, já com 16 anos, tem suas origens em todo o país, porque surge num encontro nacional de mulheres. Ela é plural e muito democrática em seu funcionamento. Uma vez por ano, havia uma plenária nacional e cada lugar elege uma pessoa para a articulação nacional. As estratégias são discutidas entre todas. E quando os projetos de lei começaram a ser propostos?

Um pré-projeto foi apresentado em 2007 e era preciso apresentar um a cada dois anos, porque eram derrubados no Legislativo. Nunca se tinha debatido, mas a campanha seguiu trabalhando e surgiram redes, como a rede de socorrista, a rede profissional de saúde. 

As interrupções legais da gravidez são referendadas com a declaração de Suprema Corte de Justiça no ano de 2012 (quando o procedimento é autorizado em casos de estupro) e cria-se também a rede para o direito ao aborto. Porque a campanha é integral: educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer. 

Depois, foi criada uma rede de cátedras universitárias em 28 universidades nacionais que ditam cátedras livres sobre aborto. Criamos uma comissão de comunicação para organizar as mensagens, a estética, os desenhos da campanha. Tudo vai sendo produzido lentamente, junto à apresentação de projetos que chamamos de despenalização social. 

Isso acontece até 2018, quando há um debate de seis meses na Câmara de Deputados e a campanha organiza tudo. Vencemos na Câmara, perdemos no Senado. A partir disso, a campanha se reúne e decide que voltaríamos a apresentar o projeto. No dia 28 de março de 2019, apresentamos novamente. Era um ano de campanha eleitoral e o candidato que hoje é presidente (Alberto Fernandéz) se compromete com o projeto. 

Mas, no dia 20 de março de 2020, entramos em lockdown obrigatório pela pandemia. Isso fez com que a apresentação demorasse, mas a campanha seguiu trabalhando muitíssimo no país por vias virtuais, cursos, representações, tudo que se pode imaginar. Já no mês de novembro, decidimos que iríamos uma vez por semana ao Congresso Nacional. Ao mesmo tempo, a campanha estava em todo o país. O que fazíamos em Buenos Aires se replicava em todos os lugares do país. As atividades, os panelaços, em todos os lados. Essa é uma grande vitória da campanha e não está só concentrada na cidade de Buenos Aires. Nessa situação, finalmente saiu a aprovação. São muitos anos de trabalho com participação dos feminismos populares. A campanha liderou o processo, mas não estávamos sozinhas. Havia a presença dos movimentos sociais, sindicatos, partidos. 

Quem são as mulheres que lutaram pela descriminalização do aborto? É possível identificar algum perfil?

A campanha é diversa e plural porque tinha de tudo. Tinha mulheres universitárias, professoras, profissionais, mas também havia pessoas de sindicatos, servidoras públicas e muitas mulheres de setores populares. É algo que perpassa distintos movimentos, atravessa partidos políticos, sindicatos, formações sociais e crenças muito diversas. Tínhamos, inclusive, companheiras das Católicas pelo Direito de Decidir. 

O presidente argentino apoia abertamente a causa. Isso influenciou a aprovação? 

Acredito que é uma vitória dos movimentos feministas. Mas creio que um apoio do governo ajuda muito nas negociações com o legislativo. É uma luta por um direito e nós seguimos pressionando porque, como qualquer direito, tem que haver um impulso de algum partido. Em 2018 havia muitos legisladores desse partido (o governista) que votaram a favor, mas o governo (o ex-presidente, Maurício Macri) não acompanhou. Dessa vez, o governo acompanhou. 

A campanha pelo aborto legal, seguro e gratuito fala de educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer. Ou seja, não se trata apenas do aborto. O que significaria essa educação sexual?

Nós temos uma lei de educação sexual nacional de 2006, ou seja, é obrigatório. Mas, como há muita oposição, essa lei, mesmo com tantos anos, tem dificuldade de implementação. 

O que nós entendemos é que a possibilidade de autonomia e decidir sobre os próprios corpos de mulheres e pessoas gestantes, inclusive pessoas trans, inclui ver a multiplicidade das situações. É preciso que se aplique a lei do maternal até a universidade para acesso à informação sobre gravidez, anticoncepcionais e uma lei de interrupção voluntária para que toda pessoa possa ter acesso a um aborto seguro. Para nós, é algo integral. De fato, a ideia de toda essa legislação pode implicar numa grande mudança cultural. Com o tempo, os abortos diminuem porque essas pessoas também são incluídas no sistema de saúde. Por que mulheres abortam? E por que é importante descriminalizar e legalizar o aborto? 

As razões pelas quais elas abortam são estritamente pessoais, por isso falamos de saúde integral. Pode ser uma questão de saúde, pode ser econômica, pode ser que sua condição naquele momento não lhe permite ter mais filhos se já tem, pode haver uma multiplicidade de razões. 

E é importante despenalizar porque não deve existir punitividade para mulheres e para pessoas gestantes por uma decisão sobre seu próprio corpo. Esse é um tema de justiça social. Tem que haver todas as condições para o aborto seguro e o acesso universal à saúde.