Elza e a conquista da América

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  • Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2022 às 05:01

- Atualizado há um ano

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1984. Fim da ditadura argentina. Silvio Rodriguez e Pablo Milanés fazem uma apresentação histórica em Buenos Aires. Pablo canta Yo pisaré las calles nuevamente, canção composta contra a ditadura chilena. Quando ele diz que “retornarão os livros e as canções que queimaram as mãos assassinas”, a plateia aplaude. Ao completar “renascerá meu povo de sua ruína, e pagarão sua culpa os traidores”, a plateia vai ao delírio.

1973. Salvador Allende não se rende ao golpe militar, faz um discurso histórico e, olhando seu governo em chamas, dá-se um tiro. Depois de ser espancado e ter suas mãos esmagadas por militares, Victor Jara, multiartista chileno, é assassinado por um militar.

1984. Na Argentina livre da opressão e dos assassinatos em massa, Mercedes Sosa havia retornado do exílio e pôde fazer uma apresentação com Leon Gieco e Milton Nascimento. É anunciada a entrada de Milton. A recepção do povo argentino são milhares de vozes cantando o vocalise de Maria, Maria. 1969. Uma dessas Marias, a cantora Elza Soares tem sua residência metralhada pelos militares. Ela e Garrincha recebem um ultimato. Ambos vão se exilar em Roma, onde são recebidos por Marieta Severo e Chico Buarque.

1984. Elza pensa em abandonar a carreira. Caetano Veloso lança o disco Velô e convida Elza Soares a cantar a canção Língua. Não sei se o “e que Chico Buarque de Hollanda nos resgate” tem algo a ver com a recepção a Elza em Roma, mas é um disco que fala da “Lusamérica latim em pó”. Que soa como Lusamérica Latina em pó. E Caetano se pergunta: “será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica que sempre precisará de ridículos tiranos?”.

1965. Ridículos tiranos de uma ditadura prendem Pablo Milanés num campo de concentração, onde ele passa dois anos isolado e forçado a trabalhos braçais.

1984. Pablo Milanés faz apresentação histórica no Rio de Janeiro. Canta Yo pisaré las calles nuevamente, e depois Canción por la Unidad Latinoamericana:

E quem garante que a História É carroça abandonada Numa beira de estrada Ou numa estação inglória

A História é um carro alegre Cheio de um povo contente Que atropela indiferente Todo aquele que a negue

Ao pensar em escrever este artigo, misturavam-se em mim o entusiasmo com a composição ministerial do novo governo chileno, e a vontade de homenagear Elza Soares, que acabou de viver 91 anos entre a gente. 1984 surgiu por acaso, mas trazendo a ideia de um grande irmão chamado continente, com novilíngua musical que contaminou toda a América Latina com artistas incríveis, e, por isso mesmo, tão perseguidos, como no romance de Orwell.

Ver que a composição ministerial de Boric foi, em sua maioria, de mulheres, é também uma conquista de Elza. Ver que a neta de Allende virou Ministra da Defesa é também uma conquista de Elza.

Quando trabalhei com ela, ficamos no camarim conversando sobre meu tio, José Louzeiro, que havia escrito sua biografia: Cantando para não enlouquecer. Como relatei em recente postagem nas redes sociais, ela subiu a falecida Caixa Cultural carregada numa cadeira. Aceitou fazer a apresentação operada da coluna. Na hora de entrar no palco, se apoiou em mim. Antes de chegar ao microfone, Elza, que mal conseguia andar, parou. Fiquei apreensivo. Ela fez aquele bico característico e rebolou. Uma mulher de vida tão trágica e sofrida poderia virar uma carroça abandonada numa beira de estrada.

Mas Elza é um carro alegre que atropelou indiferente as trevas e finalmente, agora, em 2022, virou apenas luz.