Em tempos de pandemia, não seja um alfinete

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  • Da Redação

Publicado em 26 de março de 2020 às 16:22

- Atualizado há um ano

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Na costura de uma roupa, quem é mais importante, a agulha ou a linha? No conto Um apólogo, Machado de Assis narra a conversa entre uma agulha e uma linha. Cada uma mostrando a sua importância, menospreza o trabalho da outra na feitura de um vestido.

A linha se refere à agulha como uma “sem cabeça”, diferenciando-a de um alfinete. Assim, a agulha apenas serviria para furar o pano, dando passagem à linha, fazendo, portanto, um trabalho subalterno ao mostrar o caminho à linha. Conquanto isto, ela, a linha, exerce o trabalho mais nobre já que é quem faz a costura de verdade. 

A agulha, por sua vez, rebate à adversária que é ela quem fura o pano, indo adiante, puxando a linha que de pronto obedece ao seu comando. E completa: é ela, a agulha, quem vai nos dedos da costureira. 

O ponto alto do conto se revela com a soberba frase da linha: “quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha de costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? vamos, diga lá”.  

Após esta provocação, um alfinete experiente, da cabeça grande, murmura à agulha: “Anda, aprende, tola, cansas-te em abrir caminho para ela e ela é quem vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costureira. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico”. Respondo à pergunta inicial, afirmando que nem a linha nem a agulha é mais importante para a realização do objetivo final. A relação não é de subordinação ou hierarquia, mas de coordenação, onde se cede espaço ao trabalho em equipe.

A batalha neste momento, contra o coronavírus, é da humanidade. O dinheiro que temos, o cargo que ocupamos, a profissão que exercemos, a cidade que nascemos, o partido que escolhemos já não fazem mais sentido. Do contrário, não existirá mais baile que possamos desfilar com as mais belas roupas possíveis.

Entre nós, aquartelados, já não cabe mais disputas sociais, políticas ou de outras ordens, embora existentes e resistentes à quarentena. Existentes sim, mas suscetíveis de substituição à solidariedade no combate a esta mazela.

Em que pese as divisões sociais nas quais a maioria da população tenha servido de agulha a muita linha ordinária, como conclui Machado, o momento é de colaboração na realização da tarefa principal: salvar vidas, costurar roupas para o uso coletivo. A inanição humana, como meros alfinetes, já não faz mais sentido neste momento no qual todos são importantes.

Diego Pereira é doutorando em Direito Constitucional pela UnB e mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB. Procurador Federal (AGU). É professor de Direito e autor do livro Vidas interrompidas pelo mar de lama (Lumen Júris 2018).

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