Embriagai-vos de vinho, virtude, bola ou poesia

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  • Paulo Leandro

Publicado em 6 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Baudelaire seria incompleto por não ter vivido a emoção do fútil na bola rolando? Blasfêmia de quem mistura a poesia, o vinho, a virtude, ao clamor do Bretão, cuja lacuna lateja em meio à pandemia: estádios fechados, pauta irregular, emoções lacradas...

No momento agudo do pavor da realidade, o socorro chega com a mistura dos quatro elementos substitutivos do fogo, da terra, do ar e da água. E, na poesia, nos encharcamos para enfrentar, com galhardia, o mais hediondo adversário, até então invencível.

Na ausência de atualidades, é a paixão do homem pela gorducha, o bálsamo benguê, em gratidão ao poeta Oscar Paris, pela oportunidade de tirar a bola de cima da linha fatal e puxar mais um contra-ataque, ao tocar com todo carinho nossa Encouraçada:

“Minha velha bola de couro

ontem foi nossa derradeira

aventura, a última jogada

assisti calado te jogarem de lado

te vi desprezada, humilhada

literalmente chutada pra escanteio

e confesso, no meu devaneio

também desfrutei com volúpia

da redondinha novinha e brejeira

com roupa de marca, elegante e

faceira que pulava feliz ao saber

que jogaria no teu lugar

egoísta, não percebi tua tristeza

não me dei conta da grandeza

quase submissa no teu ato solitário

de espiar. Ali, sozinha, depois da linha

de fundo imagino que sentiu o peso

do mundo em cada gomo desabar

Minha eterna parceira, fui ingrato

contigo. Logo contigo que de peito

aberto me fez delirar, sem exigir luxo

ou conforto se entregou de alma e

corpo, na grama, na areia, na lama

em qualquer lugar

te acariciei em público sem licença

ou pudor e talvez por mágoa ou amor

você se despiu das vergonhas para se

enfiar entre pernas, braços, corpos e

fronhas em espasmos delicados, grosseiros

e obscenos que só o jogo é capaz de criar

agradecido e envergonhado lembro

de mãos e pés explorando sua

circunferência com a petulância,

audácia e magia dos pretensos

vitoriosos afortunados que, certos

ou errados, usavam e abusavam de ti

recordo de você de uma outra era

ainda jovem e bela com o peso

e tamanho exigidos das mais desejadas

esferas. Era disputada palmo a palmo

parecia uma cabo de guerra e como

dama singela era muito bem tratada

voce desfilava altiva e majestosa

com talento driblava reles truculentos

vislumbrava túneis entre pernas opulentas

e no calor da batalha, no frio da navalha

varava defesas intransponíveis com a

dedicação e destreza de uma leoa no cio

linda, fulminante e feroz se apresentou

em diversos ângulos, flertou com dezenas

de postes, beijou uma centena de amantes

caiu de bruços nas malhas finas do algoz

e para nos ver correr, felizes e confiantes

até suas linhas mais duras ocultava de nós

Ô minha velha amiga a tu sorte me corrói

quantas vezes me fez vilão para em seguida,

num balão, me fazer herói. E se rolou sem

choro nem dor, por destino, acaso ou ofício

saiba que seu sacrifício satisfez o vício

que nasce junto com o jogador

repouse em sono profundo minha nobre

senhora, com a certeza de que outrora

já fizestes até chover. Deu banho de cuia

o lençol estendeu, aplicou a finta da vaca,

evitou botina e canela, fez abrir janelas

e das redes renasceu

hoje me deparo com tua face curtida,

surrada, teu corpo murcho, cansado

e sinto saudades de tudo que aprontou

e você entre troféus e taças deveria

era das graças por ter vivido na pele

a alegria do gol”.

Paulo Leandro é jornalista e professor doutor em Cultura e Sociedade.