Estupro, aborto e morte no supermercado: que a gente nunca deixe de se indignar

Leia coluna de Edgard Abbehusen

Publicado em 23 de agosto de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Sozinho não somos nada. A gente sempre precisa do outro para evoluir dentro das nossas experiências. Não tem a ver com lidar com a solidão ou saber conviver consigo mesmo. Não. Eu quero destacar que não damos um passo na nossa evolução sem o outro. Por isso cada encontro, cada pessoa que passa pela nossa vida, cada membro da nossa família e cada relação de amizade ou amorosa que vivemos tem a sua contribuição na nossa caminhada. Tem quem vai nos ensinar, tem quem vai aprender. E tem quem faça as duas coisas juntas. 

Isso aqui não é uma selva. Por mais que os defensores da barbárie preguem com veemência o “olho por olho, dente por dente”, ninguém se sente confortável com o Código de Hamurabi. Onde existe coração, onde existe humanidade, a violência, a agressão e a falta de amor ao outro não consegue ganhar terreno. 

Essa semana começou com a absurda tentativa de interferência de um grupo de religiosos no caso da menina de 10 anos grávida após ser estuprada pelo tio. Uma criança gestando uma outra criança depois de sofrer uma abominável violência. 

Se você parar por um segundo e conseguir lembrar do que fazia quando tinha 10 anos, talvez perceba o tamanho do sofrimento que ela deve estar sentido e vai sentir ainda por muito tempo. Enquanto com 10 anos você brincava com seus amigos na porta de casa, ou fazia a sua aula de balé ou jogava bola com os amigos ou assistia um filme no cinema com os seus pais, essa garotinha estava sendo violentada pelo próprio tio. É repugnante só de pensar. E o pior: sua história passou a receber a interferência de pessoas pregando um falso moralismo sobre o aborto. Seu nome foi exposto na internet. 

Nessa mesma semana, um funcionário morreu enquanto trabalhava em um supermercado e o gerente resolveu cobri-lo com um guarda-sol para não deixar de vender. Enquanto os seus clientes escolhiam frutas, verduras e outros alimentos, o corpo estava lá coberto aguardando a chegada do IML. A cena, obviamente, gerou repercussão nacional.

  Sobre esses dois casos específicos, eu queria colocar em destaque um fato: ainda não perdemos a capacidade de nos indignar diante de absurdos como esses. Quando somos expostos a histórias lamentáveis gritamos. Nos unimos em uma só voz. Fazemos barulho. Colocamos para fora todo o nosso repúdio. 

Uma forte e bonita mobilização de mulheres foi até o hospital onde a menina estava para apoiá-la e inibir o avanço autoritário dos fanáticos. Dezenas de pessoas chamaram a atenção da rede de supermercado onde o corpo do funcionário foi deixado sem a mínima dignidade. 

Esse tipo de coisa me deixa esperançoso. E não só dentro desses dois recortes de acontecimentos mais recentes, mas diante de tantos outros que vem ganhando repercussão na mídia e nas redes sociais. Todos os dias. Não vamos aceitar a barbárie, a violência, as injustiças, o ataque, a guerra. Não vamos aceitar, ainda que tentem, ainda que queiram aplicar o código de Hamurabi no nosso dia a dia, iremos resistir. Não vamos recuar. Não vamos dar nenhum passo para trás. Racismo, homofobia, violência contra as mulheres, contra as nossas crianças, crimes contra o meio ambiente, descaso com as pessoas, com a saúde das pessoas... Não vamos tolerar. 

É muito forte e crescente a ideia de que todas essas pessoas que estão no poder querendo fazer que a gente normalize os absurdos passarão. Uma hora ou outra cada uma delas irá ocupar o seu lugar no lixo da história. E como canta Chico Buarque, cada um deles vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada nesse meu, nesse nosso penar. Esse dia há de vir antes do que você pensa.   

*Edgard Abbehusen é escritor, compositor, redator, baiano, criador de conteúdo afetivo e  autor de livros; Ele  publica textos exclusivos aos domingos nas redes sociais e site do CORREIO. Acompanhe Edgard no Twitter e Instagram