Exclusivo: o livro russo que Jorge Amado traduziu e teria inspirado ‘Capitães da Areia’

Elena Beliakova, tradutora do autor para a língua russa, cita artigo revelador e semelhança entre obras. Ela também pesquisa sobre adaptação americana de ‘Capitães’ filmada em Salvador e tenta lançar livro sobre relação de Jorge e URSS

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  • Da Redação

Publicado em 18 de maio de 2020 às 06:03

- Atualizado há um ano

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Há duas semaninhas, gastei várias folhas aqui na coluna para contar a história do sucesso de Dorival Caymmi na Rússia. Explicava que ‘Suíte do Pescador’ ('Minha jangada') tinha virado um hino na União Soviética, a partir de 1973, na esteira do surpreendente sucesso que a adaptação americana de ‘Capitães da Areia’ fizera entre os jovens soviéticos.

Já contava que uma das jovens mais apaixonadas pela obra cinematográfica (proibida no Brasil pelo regime militar) era a escritora e tradutora Elena Beliakova, e já no texto de 15 dias atrás prometia um artigo dela explicando o alcance e força do escritor baiano no terreiro de pai Dostoiévski.

Mas o que nem os irmãos Karamazov poderiam supor é que um dos maiores clássicos do autor baiano teria, possivelmente, um irmão mais velho nascido na URSS, onde Jorge é o mais amado dos escritores brasileiros. “Para nós, russos, ele é o próprio Brasil”, explica Elena, antes de partir para uma possível revelação histórica. Diversas versões de capas de 'Capitães da Areia', obra lançada em 1939 (Foto: Cantina do Livro/Reprodução) “Os críticos soviéticos sempre destacaram que o autor de ‘Capitães da Areia’ foi influenciado pelos clássicos da literatura russa soviética de Gorki e Makarenko. Mas tem um livro que o afetou ainda mais. E gostaria de anunciar uma pequena descoberta filológica. Um artigo, dedicado ao 75º aniversário de Jorge Amado, informou que o escritor baiano, na sua juventude, gostou muito do livro ‘República Schkid’, de Belyk e Panteleev, e o traduziu para o português”, anuncia Elena Beliakova em artigo obtido pela coluna Baianidades e que vai na íntegra mais abaixo.

A própria tradução de ‘A República dos Vagabundos’, que assim como ‘Capitães da Areia’ conta a história de um bando de trombadinhas que supera as dificuldades com inteligência, coragem e jogo de cintura, é uma novidade aqui no Brasil. Capa de 'A República dos Vagabundos' e a indicação da tradução feita por Jorge Amado (Foto: Elena Beliakova/Divulgação) Segundo Elena, um dos artigos que dá a pista sobre essa possível inspiração saiu na edição nº 8 da revista moscovita ‘No Mundo dos Livros’, de 1987. Lá, há a tal menção de que Jorge, além de curtir autores soviéticos (como qualquer jovem comunista comum no Brasil de então), tinha lido “na juventude” o tal livro pouco conhecido de 1930 que guarda semelhanças com ‘Capitães da Areia’, obra lançada em 1939.

“Não havia nenhuma prova da existência da tradução, ela não figurava em nenhuma bibliografia de Amado. Consegui achar a informação apenas em 2010: (...) ‘A República dos Vagabundos’, tradução de Jorge Amado. (...) Não há informação sobre de qual idioma foi feita a tradução, mas suponho que, se Jorge traduziu ‘Doña Bárbara’, de Rómulo Gallegos, ele também poderia traduzir ‘A República dos Vagabundos’ do espanhol. (...) Faltava apenas descobrir se existia uma tradução em espanhol deste livro nos anos 30. Felizmente, a Internet respondeu a esta pergunta. A editora ‘Cenit’, de Madrid, publicou o livro de Belyk e L. Panteleev em 1930 com o título ‘Schkid: La República de los Vagabundos’”, descreve Elena em seu artigo. Elena Beliakova, a russa apaixonada por Jorge Amado, em visitas à Bahia (Foto: Acervo pessoal) Inspirações Empolgado com a história mirabolante envolvendo a ‘gênese’ do meu livro preferido de Jorge (que honra para um fã uma descoberta desse tipo), fui buscar mais referências. Quis saber logo de Joselia Aguiar, autora de ‘Jorge Amado - Uma Biografia’, se ela sabia dessa tradução perdida e, claro, da possível inspiração do clássico local numa obra estrangeira.

Cética, a jornalista e escritora baiana, que atualmente dirige a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, considerou temerário supor que Jorge tenha se inspirado em algum outro livro (russo ou não) para compor ‘Capitães’.

“Muitos veem proximidade entre personagens e enredos de Jorge e outros autores. É fascinante tentar refazer sua trajetória de leituras e buscar similaridades. Mas à sua trajetória de leituras somava-se sua experiência pessoal. É sua grande característica como autor. (...) ‘Capitães’, segundo dizia, foi resultado da leitura de jornais da época; havia ‘bandos’ de meninos a incomodar comerciantes. Encontrei uma fala dele certa vez dizendo que o autor de reportagens sobre esses ‘bandos’ foi Aydano Couto Ferraz, jornalista e escritor que era de sua turma. Em cada personagem ou passagem podemos reconhecer referências da vida real”, observa Joselia, que apesar da crítica, considera de fato um “achado” a tradução citada pela professora Elena. Biografia de Jorge Amado, escrita por Joselia Aguiar, foi lançada em 2018 (Foto: Betto Jr/Arquivo CORREIO)  A jornalista também acredita que, se algum autor foi realmente influente em ‘Capitães’, esse cara seria o britânico Charles Dickens.

“É uma história de bando de vagabundos, à semelhança de Dickens, que pode ser o ancestral comum. (...) Jorge foi leitor desses livros soviéticos que chegavam aqui nos anos 1930 em edições em língua espanhola. Pode ter adquirido alguns deles também durante as viagens que fez pela América Latina nessa época. Contava que traduziu de fato ‘Dona Bárbara’. Até a década de 1950, emprestou algumas vezes seu nome para traduções feitas por outras pessoas para editoras ‘amigas’, que viam no uso do nome de Jorge a possibilidade de atrair leitores”, acrescentou Joselia, destacando ainda que a citada tradução de ‘A República dos Vagabundos’ é bem posterior a ‘Capitães’: só foi lançada em 1947.

Elena conta ter uma solução para o aparente desencontro de datas: "Primeiro, a escritora e tradutora transcreveu o que Jorge Amado afirma em entrevista ao diário «Известия» (Notícias), publicada em 18 de agosto de 1978: “Eu me deleitava com leitura dos livros dos escritores soviéticos dos anos 30, e ‘A República dos Vagabundos’, de L. Panteleev, ainda traduzi para o português”.

É essa entrevista que o artigo do ‘No Mundo dos Livros’, que citei lá atrás, reproduz na década seguinte.“Mais uma coisa. A editora ‘Cenit’, de Madrid, que publicou o livro [‘República’] em 1930, funcionou entre 1928 e 1936. Claro que Jorge leu o livro neste período”, acredita Elena ao usar a segunda carta, mencionando ainda até desfechos semelhantes nas duas obras, mas isso você só vai ver lá embaixo, no artigo dela.Amado Russo Antes que alguns se piquem, devo me apressar para explicar que o projeto principal de Elena, por ora, é encontrar uma editora no Brasil para publicar seu livro ‘Amado Russo e a Literatura Brasileira na URSS’, segundo ela, a “única (obra) monográfica sobre contatos literários russo-brasileiros”.“Os pesquisadores brasileiros não têm bastante informação e tiram conclusões erradas sobre as relações entre Amado e URSS. (...) Infelizmente, ninguém quer publicar o livro no Brasil”, lamenta ela, que já traduziu vários clássicos brasileiros na Rússia.Na lista, além de obras importantes da literatura nacional como ‘A Hora da Estrela’, de Clarice Lispector, muita coisa de Jorge: tem ‘A Descoberta da América pelos Turcos’, ‘O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá’, ‘Bahia de Todos os Santos’, ‘O Milagre dos Pássaros’, ‘A Bola e o Goleiro’ e, claro, ‘Capitães’.

Nem te conto o motivo de ela ter se apaixonado pelo Brasil e ter dado uns rolés na Bahia. “Por causa de Jorge Amado, quem amo de todo coração. Vim duas vezes, em 2010 e 2012 quando fui convidada a participar no centenário de Jorge Amado, pois sou a única viva pesquisadora da criação de Jorge na Rússia. As visitas duraram duas semanas cada uma”, explica ela à coluna.

Fenômeno ianque na URSS filmado na Bahia Além da caça a uma editora, Elena Beliakova também está em busca de pessoas envolvidas na produção e realização de ‘The Sandpit Generals’, a tal adaptação obscura americana que levou um terço dos soviéticos ao cinema, na década de 70, e que é seu filme preferido, assistido por ela mais de 100 vezes (literalmente).

Elena tinha 17 anos quando viu o filme pela primeira vez, em 1974, na cidade de Tcherepovets, região de Vologda, no noroeste da Rússia - um ponto equidistante entre São Petersburgo e Moscou, das quais se distancia uns 500 km.“A pesquisa está em andamento, o processo é muito difícil: não é possível encontrar informação e participantes do filme. Por exemplo, queria encontrar Ademir da Silva, que desempenhou o papel de João Grande. Comecei a pesquisa em 1998 quando soube que o filme é conhecido só na União Soviética e é completamente desconhecido no Brasil e EUA. Queria compreender a razão”, explica a pesquisadora.A investigação ainda engatinha. “Durante minhas visitas à Bahia, meu amigo muito querido David Barouh, que participou no filme, e sua esposa Edilene me mostraram todas estações [locações] da filmagem na Bahia [Salvador] e na Ilha da Itaparica”, explica Beliakova, a quem finalmente concedo a palavra para explicar como nosso autor mais famoso se tornou um fenômeno editorial e uma importante válvula de escape sentimental entre os soviéticos/russos.

***Capitães da República dos Vagabundos

Por Elena Beliakova

"Esse artigo trata dos contatos culturais internacionais, do amor dos leitores russos por Jorge Amado e do sucesso fenomenal de um filme norte-americano na União Soviética. E o significado do seu título ficará claro abaixo.

Por que as pessoas lêem a literatura e assistem os filmes estrangeiros? Provavelmente, porque lhes falta algo em filmes e livros do seu país. E um escritor estrangeiro pode encher o vácuo duma literatura nacional. Jorge Amado é esse tipo de escritor. Na Rússia, Jorge Amado sempre foi e continua sendo o escritor brasileiro número um. E mais do que isso: para nós, russos, ele é o próprio Brasil.

Adoramos o nosso querido Jorge e foi amor à primeira vista. Este amor surgiu quando foram publicadas na União Soviética, em 1948 e 1949, as traduções de ‘São Jorge dos Ilhéus’ e ‘Seara Vermelha’. O tomo com ‘Seara Vermelha’, presente em todas as bibliotecas soviéticas da época, era o mais lido entre todos os livros de autores estrangeiros. Qual foi a razão de sua popularidade?

É que, na época (ao fim dos anos quarenta), o único conflito na literatura soviética era entre o bom e o melhor e os problemas reais não foram refletidos na arte. E os leitores soviéticos daquela época encontravam em ‘Seara Vermelha’ a verdade que não havia e não poderia haver na literatura soviética daquele tempo. As pessoas que viveram os terríveis anos da guerra e a destruição do pós-guerra receberam ‘Seara Vermelha’ como um livro sobre sua própria vida, seu destino.

O interesse pelo escritor se intensificou após o lançamento da tradução de ‘Gabriela’ em 1961. Os leitores soviéticos apreciavam com grande interesse todos os novos romances do escritor baiano, mas ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’ era o preferido. De novo o livro de Amado deu aos leitores russos aquilo que a literatura de seu país não podia dar. Ainda em 1954, no II Congresso dos escritores soviéticos, Amado dizia que o principal defeito da literatura soviética era a falta de atenção em relação aos sentimentos humanos. 

No entanto, o menosprezo por determinados sentimentos é característico não só da literatura soviética, mas da literatura russa como um todo. A famosa frase de Lev Tolstoi que diz que “todas as famílias felizes são iguais” já diz muito. Mais precisamente, que o amor mútuo e feliz nunca interessou aos escritores russos. Aos escritores, não, mas aos leitores, sim. 

Esses últimos queriam ler não só sobre o amor trágico, não correspondido, não realizado, mas também sobre o amor que vence, supera tudo e, o que não é menos importante, é sensível. E no romance de Amado, em todo o seu decorrer, soam sinos radiantes de amor ardente, que trazem inesgotáveis alegrias ao corpo e à alma. 

Os livros do escritor baiano têm uma coisa que falta à literatura russa, que é a alegria de viver. Nós, russos, encaramos a vida muito tragicamente e nos cansamos de nós mesmos nesta tragédia cotidiana. É realmente difícil ficar otimista quando se tem diante dos olhos, ao longo de sete meses do ano, uma planície infinita coberta de gelo sob um céu cinzento e sem um único dia de sol. Em situações como essas, os romances de Amado nos dão a leveza e a harmonia com o mundo de que tanto necessitamos.

A terceira onda do interesse pela criação de Jorge Amado não foi causada por um novo livro, mas por um filme. Trata-se da primeira versão de adaptação de ‘Capitães da Areia’ filmada pelo diretor norte-americano intitulado, em russo, ‘Generais da Areia’. 

O filme foi projetado durante o Festival de Cinema Internacional de Moscou em 1971 e estreou em 1974 nos cinemas da URSS. Logo se tornou um cult. Só durante um ano o filme foi assistido por 34 milhões dos espectadores. No ano seguinte, o jornal juvenil mais popular ‘Komsomolskaia Pravda’ o destacou ‘Generais’ como o melhor filme estrangeiro.

O sucesso do filme foi realmente fenomenal, houve longas filas em cinemas, os jovens o assistiram várias vezes. Eu mesma o assisti mais de cem vezes e sequer sei o número exato, pois parei de contar depois da centésima vez.

Infelizmente, ‘Generais da Areia’ foi proibido no Brasil na época da ditadura militar por ser considerado uma propaganda comunista. Por isso, os brasileiros nem sempre podem compreender a razão desta popularidade do filme realmente fantástica na URSS e a interpretam erradamente. 

Em uma tese (que é um dos motivos de eu estar escrevendo este artigo), o sucesso do filme se explica pela coincidência que podem ser encontradas  nas vidas dos espectadores soviéticos com os destinos das crianças abandonadas do Brasil, comparando com o fato de  que muitos  soviéticos que sofreram os horrores da Segunda Guerra Mundial ficaram órfãos e, por isso, se identificaram com os capitães da areia brasileiros. 

Na realidade, o que aconteceu foi exatamente o oposto. Mesmo as pessoas que perderam pais durante a guerra não viram a analogia com os personagens do filme. A União Soviética não abandonou seus filhos mesmo nos piores anos.

Logo após a expulsão dos invasores nazistas, orfanatos foram organizados em todos os territórios libertados. E no país, devastado pela guerra, poderia não haver pão o suficiente, mas havia, isso sim, bastante cuidado e educação para todas as crianças. 

E, o mais importante, estas crianças sabiam que sua pátria e seu povo precisavam deles. Elas não foram expulsas da sociedade, como os capitães da areia. Elas não roubaram, não mendigaram, elas estudaram, aprenderam profissões, tornam-se pessoas dignas.

Um exemplo típico é a vida de Nikolai Gubenko, o último ministro da cultura da URSS. Ele nasceu em 1941, quando os nazistas ocuparam Odessa, sua cidade natal.  Seu pai morreu na guerra e a sua mãe, que lutou contra fascistas na clandestinidade, foi executada.

Ao longo dos primeiros anos de sua vida, o futuro ministro foi um menino de rua, mas depois da libertação de Odessa, foi abrigado em um orfanato, com ênfase em estudos da língua inglesa. Ao terminar a educação escolar, ele ingressou no Instituto Estatal da Cinematografia, tornou-se famoso como ator e diretor, também dirigiu um teatro e assumiu o cargo de Ministro da cultura. Muita coincidência com os personagens de ‘Capitães da Areia’, não é? 

No entanto, mesmo se as «crianças da guerra» realmente tivessem visto uma analogia entre seus destinos e os dos personagens do filme, isso não teria influenciado a popularidade de ‘Generais da Areia’, pois não foram eles que lotaram  os cinemas. O público de espectadores  era composto basicamente pelos adolescentes de 15 a 25 anos e as “crianças da guerra” já estavam com quase quarenta anos. 

A origem do sucesso do filme não foi a analogia, mas o contraste entre os destinos dos personagens do filme. Os anos setenta foi um dos períodos mais prósperos na história da União Soviética. A guerra tornou-se história sobre a qual narravam os veteranos. Vivíamos bem e tranquilo demais, os jovens não tinham nenhum problema sério, por isso ‘Generais da Areia’ teve um efeito de bomba que explode: os personagens do filme, jovens e crianças da nossa idade, viviam em condições tão desumanas que sequer podíamos imaginar! Mas se o filme tivesse causado só dó, não teria se transformado em culto.

Ao sair dos cinemas, as almas dos espectadores ficavam transbordadas não apenas de cólera por causa da injustiça social, mas também de admiração pelos personagens. 

Estes adolescentes abandonados, marginalizados pela sociedade, despojados de casa e de família, privados do calor humano, a despeito de horríveis condições de vida repleta de miséria e  crimes, não só conseguiram salvar sua dignidade, mas também puderam encarnar as melhores qualidades humanas: alma pura e nobreza, firmeza e coragem, fidelidade aos amigos e capacidade de amar. 

A intolerância dos poderosos e a humilhação permanente não foram capazes de alquebrá-los, nem de torná-los submissos. Eles se recusam a ser vítimas, lutaram pela liberdade, pelo direito de serem homens, de viver e de amar.

Para nós, jovens soviéticos daquela época, a luta dos personagens do filme foi uma parte da luta do povo brasileiro contra ditadura. Nos solidarizávamos  com essa luta. Eu mesma, quando estudante universitária, organizei um comitê de ajuda para as  crianças abandonadas do Brasil.

Realmente, os jovens soviéticos encontraram em ‘Generais da Areia’ o que faltava no cinema soviético nos anos setenta.

Primeiramente, vimos um herói verdadeiro. Nos filmes soviéticos da época, não havia personagens deste tipo. Em geral, o protagonista era um intelectual refletindo sobre o significado da vida, pensando, principalmente (como se dizia em um filme soviético daquela época), a respeito da questão se o sol nasceria ou não. Mas Pedro Bala não sofre com a  imperfeição da existência, ele age, luta; a força de caráter dele é impressionante. Eis o verdadeiro herói da época.

Em segundo lugar, os jovens sempre anseiam o amor, querem ler sobre ele e assisti-lo em filmes. No texto acima, já falei como os escritores russos tratam esse sentimento, sem conseguirem descrever o amor mútuo. Porém, o filme ‘Generais da Areia’ mostrava um grande amor, um amor imbatível, um amor que é mais poderoso do que a morte.

Por fim, mas não menos importante, é preciso falar da música encantadora. Provavelmente, foi a melhor música do cinema mundial. Mesmo cantada em uma língua desconhecida, parecia que era possível entender cada palavra, e as cordas mais sensíveis da alma ressoavam e no coração que parecia cantar com ela esta melodia triste e corajosa.

Infelizmente, quase ninguém no Brasil assistiu a ‘Generais da Areia’ e, no entanto, o filme tem a reputação negativa devido principalmente à abundância de personagens loiros com olhos azuis, cujos papéis foram desempenhados pelos atores de Hollywood. 

Meus prezados amigos brasileiros! Vocês leram com atenção o livro de Jorge Amado? Hall Bartlett conseguiu encontrar atores que correspondiam exatamente à descrição do autor do livro: Dora é «bonita menina com olhos grandes, cabelos muito loiros», Pedro Bala é «alvo de cabelos loiros crescidos desabando em ondas mal tratadas», Professor é «um magrelo branco». Atores profissionais desempenhavam só papéis dos personagens principais, a maioria dos atores não era profissional, eram uns garotos baianos com a pele de várias cores. 

Entre eles tem alvos com cabelos loiros. O papel do irmão de Dora, Zé Fuinha, de cabelos loiros e olhos azuis, foi desempenhado pelo baiano de quinta geração; o papel de Almiro foi desempenhado também pelo baiano de uma família respeitada e bem conhecida.

Talvez não foi por acaso que Jorge Amado criou os seus heróis brancos, talvez ele gostasse de enfatizar que o problema das crianças da rua não era de raça ou nacionalidade, mas da sociedade e de classe. Por isso o problema só pode ser resolvido politicamente. 

Nos países socialistas, não havia crianças de rua. Cuba, o país que não é rico, não convive com esse problema. Na Rússia, ainda após a terrível guerra, não houve crianças abandonadas, porém, logo depois da desintegração da União Soviética, elas apareceram, todas branquinhas, com olhos azuis.

Gostaria de reafirmar que ‘Generais da Areia’ não é um filme simplesmente bom, mas um grande filme. Já se passaram mais de 40 anos desde sua estreia nos cinemas soviéticos, porém as pessoas que o assistiram quando jovens, ainda hoje não conseguem esquecê-lo e continuam a  revê-lo e debatê-lo na Internet. Quantas obras da história do cinema permanecem vivas nos corações dos espectadores mesmo quase meio século depois de sua criação? 

E naquela época, em 1974, os espectadores encantados corriam às bibliotecas em busca do livro de Jorge Amado, mas a tradução para o russo ainda não existia. Se não fosse o filme, dificilmente o livro ‘Capitães da Areia’ seria traduzido para russo. E o mais estranho é que, em 1973, foram publicados em russo dois romances do ciclo baiano de Jorge Amado, ‘Jubiabá’ e ‘Mar Morto’, entretanto, ‘Capitães da Areia’ não.

Agora, é difícil dizer por que o livro não foi traduzido. Quem sabe, em função de um pequeno trecho de uma tradução de baixíssima qualidade de ‘Capitães’ ter sido publicado na revista ‘Pela Defesa da Paz’, em 1952. 

Não se sabe quem foi o tradutor, mas fica nítido que o trecho foi traduzido do espanhol. Pode ser que essa má tradução tenha obrigado Inna Tynhanova, a tradutora de ‘Mar Morto’, caracterizar ‘Capitães’ “como um dos mais fracos livros do início de carreira de Amado” e, por isso,  foi incluído na coletânea. Posso imaginar como ela lamentou por suas palavras depois do sucesso fenomenal do filme.

A tradução de Yury Kalugin foi publicada na revista ‘Molodaia Gvardia’ (A Jovem Guarda) em 1976 em versão resumida. Os leitores ficaram decepcionados.  A impressão era que a tradução havia sido feita às pressas, pois não continha a força e beleza do original.           

Minha história começou porque não havia tradução para o russo de ‘Capitães da Areia’. Desesperada para ler o romance, prometi a mim mesma que traduziria o livro. Minha tradução foi publicada apenas em 2000 e, desculpem a falta de modéstia da minha parte, tornou-se popular e muito lida pelos leitores russos.

É importante afirmar que ‘Capitães da Areia’ é um exemplo espetacular de que as relações internacionais podem render frutos.

Os críticos soviéticos sempre destacaram que o autor de ‘Capitães da Areia’ foi influenciado pelos clássicos da literatura russa soviética de Gorki e Makarenko. Mas tem um livro que o afetou ainda mais. E gostaria de anunciar uma pequena descoberta filológica. 

Um artigo, dedicado ao 75º aniversário de Jorge Amado, informou que o escritor baiano, na sua juventude, gostou muito do livro ‘República Schkid’, de Belyk e Panteleev e o traduziu para o português. Fiquei muito intrigada com a informação e questionei: se ele traduziu, então, de qual língua (já que Jorge não lia e nem falava russo) e qual foi o destino da tradução?

Não havia nenhuma prova da existência da tradução, ela não figurava em nenhuma bibliografia de Amado. Consegui achar a informação apenas em 2010, durante a minha viagem ao Brasil. Quem me ajudou muito foi minha amiga Zoia Prestes, a filha do lendário Cavaleiro da Esperança  [Luís Carlos Prestes]. 

Ela se propôs a buscar o livro na Biblioteca Nacional quando surgiu um problema: como buscar se não sabíamos o título em português? Por isso, decidimos buscar pelos nomes e sobrenomes dos autores. E conseguimos encontrar: Belyk e L. Panteleev, ‘A República dos Vagabundos’, tradução de Jorge Amado.

Mais do que isso, Zoia achou o livro em um sebo e me presenteou! Não há informação sobre de qual idioma foi feita a tradução, mas suponho que, se Jorge traduziu ‘Doña Bárbara’, de Rómulo Gallegos, ele também poderia traduzir ‘A República dos Vagabundos’ do espanhol. 

Faltava apenas descobrir se existia uma tradução em espanhol deste livro nos anos 30. Felizmente, a Internet respondeu a esta pergunta. A editora «Cenit» de Madrid publicou o livro de Belyk e L. Panteleev em 1930 com o título ‘Schkid: La república de los vagabundos’.

Tudo coincidiu. Jorge Amado realmente leu este livro na sua juventude e o traduziu para o português. Ficou tão inspirado que decidiu escrever algo parecido sobre as crianças abandonadas da Bahia, sua cidade natal. Ele queria que os personagens de seu livro não se tornassem ladrões e bandidos, mas cientistas, engenheiros, artistas, como os personagens de ‘A República dos Vagabundos’. 

Isso foi impossível no contexto brasileiro da década de 1930. Por isso o ingresso dos personagens no Partido Comunista foi o final mais realista de todos os finais mais otimistas.

Então, um jovem escritor brasileiro, inspirado pela obra de autores soviéticos, escreveu seu livro sobre crianças de rua do Brasil; o diretor norte-americano ficou tão impressionado com este livro que filmou a adaptação que enlouqueceu toda a União Soviética e a menina russa se apaixonou pelo filme e traduziu o livro de Amado para russo que se tornou um dos mais populares entre os leitores russos. O círculo se fechou."