Falar de 'violência obstétrica' é exagero?

O governo federal vetou o termo “violência obstétrica” com justificativa de que não há intencionalidade na prática. Controverso, o tema é um convite à reflexão; veja opinião de especialistas

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  • Da Redação

Publicado em 19 de maio de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Questões de segurança e conforto para parturientes e seus filhos estão em debate (foto de Evandro Veiga)   O termo foi usado para desqualificar

Quando avaliamos o termo “violência obstétrica”, observamos marcante imprecisão, pois em todo o ciclo de gestação/parto/puerpério a falta de qualidade perpassa os profissionais de saúde, dialogando com os níveis de educação, acesso, estrutura dos serviços, qualificação dos profissionais, da gestão e das decisões políticas, seja institucional ou governamental. O termo, impreciso e mal reportado, foi utilizado de maneira sectária para desqualificar a medicina, ignorando as contribuições diante dos desafios da saúde, sobretudo da mulher, que deve “sobreviver, prosperar e transformar”.

Não há que se negar a violência, e ela não é restrita a profissional ou instituição. Mas a denúncia e tratamento é de competência de outro poder, com devida tipificação e sanções cabíveis, seja na esfera ética, administrativa ou criminal, como desvio daquilo que é a missão primordial da medicina: a serviço da saúde e da coletividade, exercida sem discriminação, com zelo e o melhor de sua capacidade profissional. O tema é complexo e sofre forte influência de outros fatores presentes em nosso país, mas tem sido confundido com a falta de qualidade no sistema de saúde.

De acordo com diversas publicações, a exemplo da recente produção do Royal College of Obstetricians & Gynaecologists, sobre “trabalho em equipe em maternidades é fundamental para a redução de mortes de bebês e das lesões cerebrais durante o parto”, o foco deve ser em soluções sistêmicas para a melhoraria do serviço.

Na última semana, sugiram várias controvérsias em torno da discussão sobre o despacho do Ministério da Saúde, ao considerar que o termo “violência obstétrica” tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado. Isso demonstra a renovação do poder executivo, comprometendo-se com uma agenda efetiva, trazendo o paciente para a centralidade na produção do cuidado prestado pelos diversos profissionais de saúde, alinhado com as entidades científicas e agências internacionais.

Nesta perspectiva, a pasta assume a liderança do processo ao desestimular o atrito entre profissionais de saúde, sem interferir nas do poder judiciário, mantendo-se distante de interesses corporativos que possam conflitar com os avanços necessários na assistência ao parto e nascimento, sobretudo diante dos indicadores de saúde na linha obstétrica neonatal.

O tema da violência é complexo e sofre influência de outros fatores presentes em nosso contexto de país, sobretudo os aspectos sociais e econômicos." Entretanto, o termo “violência” pressupõe uma intencionalidade, segundo a própria OMS, e não deve ser confundido com a falta de qualidade no serviço como um todo."O Cremeb e a Sogiba apoiam a decisão do MS, que acertou em reconhecer o papel dos profissionais de saúde diante do contexto desafiador, conectados com os objetivos mútuos em atingir as metas pactuadas na agenda 2030 (ODS), que propõe ações específicas para as mulheres e crianças, em busca de um parto respeitoso e digno para todas.

Caio Lessa é Presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia da Bahia e Conselheiro licenciado do Cremeb

Cautela com os ânimos políticos

Não há uma definição única para o termo “violência obstétrica” na literatura e talvez por isso ocorrem tantas divergências sobre o assunto. Com uma breve pesquisa na internet, podemos concluir que trata-se de “um ato danoso cometido em serviço de saúde contra a mulher durante a assistência ao seu pré-natal, parto, puerpério ou abortamento. Seja ele verbal, físico ou psicológico.”

A estatística brasileira mostra que 25% das mulheres sofreram este tipo de violência nos serviços públicos em 2010. No último dia 3 de maio, o Ministério da Saúde alegou que o termo tem “conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado”. Essa alegação chama a atenção para o “viés ideológico“ que o termo pode trazer e que atinge a classe médica. Após a declaração, as divergências entre classes (médico/paciente, médicos/colegas das outras áreas de saúde) aumentaram e essas, sim, não trazem benefício algum à população. Portanto, devemos ter cautela, principalmente, com os ânimos políticos. A discussão deve ser estendida à toda equipe de saúde multidisciplinar que está passível de cometer tal delito.

Eu, por exemplo, estou incluída. Não que tivesse a intenção! E não quero acreditar que o colega o faça com esse intuito."Mas, ao auxiliar a retomada do protagonismo da mulher, estamos estimulando que ELA faça esse julgamento. "Afinal, o processo é dela e o nosso papel, nesses casos, é o de acolher e amparar.

Sim, trabalho em instituição pública e sei das dificuldades diante da superlotação e falta de estrutura. Ficamos, por vezes, desestimulados e sobrecarregados. Mas, acredito que podemos fazer melhor: olhar nos olhos, ter empatia, explicando procedimentos e possibilidades de escolhas.

O fato é que a violência existe e cabe a nós profissionais combatê-la diariamente oferecendo atendimento respeitoso às pacientes e nos atualizando através de estudos e documentos científicos para reconhecer todas as formas que são denunciadas.

Patrícia Schmitz é ginecologista e obstetra, membro da Equipe Semear

A reflexão é sobre relação de poder

Recentemente, sofremos, nós mulheres, usuárias do sistema de saúde obstétrico brasileiro, uma violência. Munido, segundo definição do termo “violência” pela OMS, o Ministério da Saúde (MS), em uso intencional do seu poder, agiu contra um grupo social, mais diretamente, nós mulheres, de forma a nos causar sofrimento, por nos privar o nosso direito de fala.

Poderia ser simples assim a minha retratação diante do despacho emitido pelo MS julgando imprópria a expressão “violência obstétrica”. Mas há de ser fazer reflexões, há de se promover questionamentos."Violência obstétrica não é violência DO obstetra. Acredito que, por mais maçante que seja essa frase, ainda precisamos que ela se torne clara." A intencionalidade, como consta na definição do termo “violência”, foi o conceito que pesou para abolição da expressão. No entanto, a reflexão deveria ser sobre relação de poder.

Se existe uma relação de poder médico (ou outro profissional) x paciente, pode existir uma violência. Você violenta o outro quando o invade e lhe toma a verdade em detrimento das suas verdades absolutas.

Estudamos por anos a obstetrícia, sabemos muito (ou deveríamos) sobre a fisiologia do parto, as patologias possíveis. Mas aquele corpo pertence àquela mulher. O parto é da mulher! Quando essa frase for compreendida em sua totalidade, saberemos que nós, profissionais, somos importantes mesmo é quando assumimos nosso papel coadjuvante no processo de parto.

Os problemas de falta de leitos, medicações, remunerações existem e são terríveis. Mas aqui eu venho falar sob outra ótica, a das usuárias desse sistema. Sob quem, no momento de sua maior fragilidade e entrega, ali no parto, com medo e dor, o que ela precisa é de respeito às suas escolhas, acolhimento de sua vulnerabilidade.

Por hora, infelizmente, violência obstétrica existe sim. E nós (eu, mulher, parteira e mãe, também) lutaremos contra ela. Se pudermos lutar juntas, e ninguém soltar a mão de ninguém, melhor. Então, prezado time do Ministério da Saúde, querendo parceria, conte conosco. Juntas e nomeando a violência obstétrica, poderemos mudar pra melhorar o sistema.

Tanila Glaeser é enfermeira obstétrica e parteira humana (@sobreparto)

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