Fé e festa são irmãs siamesas na Bahia

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  • Da Redação

Publicado em 9 de dezembro de 2019 às 14:10

- Atualizado há um ano

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A cidade da Bahia é, por execelência, uma cidade sagrada. Primeiro, por ter sua capital com o nome do nosso senhor Cristo, cidade do São Salvador, segundo por ser banhada pelas águas de Kirimuré e batizada como Baía-de-Todos os Santos, que também é o sobrenome da cidade barroca da Bahia. A confluência de diferentes povos na formação da sua génetica cultural produziu elementos deveras sincréticos, como forma de marco de resistência e resiliência dos povos subjugados. Aqui se formou uma nova civilização em que o sagrado e o profano não se dissociam, e sim se entrelaçam nas procissões, noventas, trezenas, entre as alfaias, altares, pejis, festas, devoções, cânticos e caranavais.

Mas, foi sobretudo, as civiliações africanas aportadas na Bahia, entre os agentes classificados como escravos, que se recriaram suas festividades anuais em África, sob a denominação genérica de sincretismo, uma forma simbiótica na produção de uma nova cultura, uma cultura inventada: a baiana, incensada e defumada por avatares consagrados da intelectualidade negro-mestiça Dorival Caymmi, Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger.

E se você quer conhecer a Bahia, a religiosidade de um povo asociada a festa, a alegria, a diversão e um jeito especial de viver, então chegue no dia 4 de dezembro, quando se abre o calendário das festas populares de rua, com a celebração de Santa Bárbara, protetora dos bombeiros e das trabalhadoras do campo da diversão sexual. A santa foi associada com Iansã. Orixá virulento que pinta os pés de vermeho e tem cabelos cinzentos, talvéz a própria inspirou a personagrem Tempestade, de Halle Berry.

“Iansã comanda os ventos e as força dos elementos”, no dizer de Gil e Caetano. Ela leva centenas de pessoas para o Centro Histórico em manhãs ensolaradas, para contemplar sua irmã Bárbara, não se funde numa de duas na qual se vira uma só . Suas filhas andam com as mãos na cintura ou nas “cadeiras”. Este é um gesto que em alguns terreiros é proibido por ser uma atitude de um domínio sobre certo esquema de percepção do mundo, o da autoridade, só podendo ser realizado pela Iyalorixá ou Babalorixá. Entretanto, esse gesto é observado em quase todos os filhos-de-santo e o povo da Bahia nas festa de rua. O gesto remonta à postura corporal melódica de Oyá-Iansã, deusa da guerra e mulher do rei Xangô, portanto a rainha. As “mãos nas cadeiras”, ou “mãos na cintura” são os gestos mais observados pela audiência quando esse Orixá manifesta e se desloca por todo espaço do terreiro. A atitude de autoridade do Orixá Oyá-Iansã, assim como as de seus filhos, impõe respeito a todos no terreiro e na velha cidade da Bahia.

As mulheres de Iansã são conhecidas por suas incontinências verbais. Uma delas me disse: “Eu sou de Oyá e não de espiar”, referindo a sua atitude de falar tudo o que pensa.

Essa religiosidade negro-mestica baiana, outrora, fez o mês de dezembro ser conhecido como o mês da entrega das frutas da estação, nos terreriros a Oxum, divindade associada à dona da cidade Nossa Senhora da Conceição da Praia quando aparece toda a sorte de frutas embalando a cidade numa festa de cores e aroomas em meio à procissão com os incensos e ladanhias.

Sua irmã Oxum, também louvada, faz com que as águas fiquem calmas para a navegação e, juntas, favoreçam os devotos à fertilidade infinta. Conceição e Concepção se encontram nas lagoas sagradas de Oxum, no Dique ou no Abaeté, entre flores, macassa, mel e alfazema, devotos lotam a cidade. Seja nos terreiros ou nas ruas, a magnitude da Mãe Maria e da Mãe Oxum aceitam presentes “de filho de pescador ou desembargador”.

No século XIX, no dia 8, pelas ruas antigas do Comércio, os homens desfilavam com seus engomados ternos de linho branco, ao passo que as muheres usavam roupas feitas pelas modistas consagradas da cidade. Nesse dia, muitos batizam seus filhos, tendo a santinha como madrinha, logo depois o regabodfe como convém às festas da Bahia, entre incenso, samba de roda, capoeira, batida de pitanga, limonada, muita prosa, paquera, beijo de colada e cerveja gelada.

Após a pasagem do Ano Bom, a fé nas águas e na renovação sempre ficou ao encargo de Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes, com uma procissão marítima, em dia ensolarado, entre sambas e moças belas, das recatadas as mais afoitas, a desfilarem na praia a espera da Galeota Gratidão do Povo.

Cinco dias depois, a cidade mudava sua rota para antiga Estrada das Boiadas, atual Liberdade. No adro da Igreja da Lapinha, ainda hoje, se enfeita com ternos e ranchos, numa luta feroz para sobreviver, em meio à modernidade líquida e eletrônica, no qual os governantes não se comovem com a plasticidade desses folguedos, hoje em decadência. Mas, é nessa festa que preconiza o calendário da maior festa da Bahia a Lavagem do Bonfim, que acontece sempre após a terceira quinta feira depois da festa de Reis.

Filhas-de-santo e baianos de todos os credos, raças e condição social andam oito kilomentros, ao som de batucadas para louvar o Senhor do Bonfim. Esse associado a Oxalá.

Essa é uma reconstrução simbólica das águas de Oxalá dos candomblés, quando os devotos de branco, colocam quartinhas com água sobre as cabeças, para lavar esse grande Orixá. E em misericórdia, como diz o hino do Senhor do Bonfim, as baianas em grupos dispersos, atualmente, atendendo as vontades dos polÍticos, lavam o adro da Igreja com águas de cheiro e abençoam os fiéis, lavando as suas cabeças.

Os fíéis atam nos punhos as famosas fitinhas, que antigamente era a medida das chagas de Cristo até o peito, e de olhos fechados eles fazem os pedidos, enquanto se dá três nós no fino tecido. Para muitos o ano começa com a lavagem, quando se deseja feliz Ano Novo, mas para a maioria só começa mesmo após o Carnaval.

Uma cidade aquática, entre bispos, padres, pais e mães-de-santo aspergindo águas, benta, de cheiro, dos líquidos sagrados das quartinhas, banham as cabeças e os solos sagrados das igrejas, mas, é com o mar que a esperança na bonança e prosperidade de um novo ano chega. E é através da liga aquática entre África e Bahia que Dona Iemanjá abençoa essa gente sofrida. Esse Orixá é tão poderoso, está ela ligada aos seios, é o símbolo da maternidade, proteção e cuidado com a saúde, via a alimentação dos bebês. Nos seus mitos são, sempre, ressaltados a sua autoridade, o seu aspecto da maternidade, a preocupação de cuidar dos filhos, protegendo-os e adotando os netos, Entretanto, é no colo dessa aiyabá que toda a cidade devota seus pedidos, em forma de presentes e presença e lavam seus Oris, cabeças.

Iemanjá, nas suas variadas formas, tem uma associação com os seios, a aleitamento e fertilidade. Os mitos contam que de seus seios nasceram o mar e todos os Orixás, dessa forma a ela está associada à cura do câncer de mama. É uma divindade aquática que tem vários nomes na cultura popular, Dona Maria, Janaina, Mucunã, Inaê, Mãe d´Água . É considerada como uma sereia e liga-se a cabeça por ser a responsável e a guardiã do Orí. Logo, os transtornos mentais e estados confusos estão sob os seus cuidados.

Ainda em fevereiro, os atabaques e agogôs ecoam nos conduzindo para o velho bairro de Itapoã, a pedra que ronca, antiga área de verenaeio protegida pela Virgem Maria. Entre ladainhas e novenas, os pescadores, praieiros, candomblecistas, movimentos socias e afoxés fazem um grito de Carnaval. Eles dançam e cantam para Nossa Senhora, lavando a pequena escadaria da Igreja, embalados pela Baleia do bloco afro Malê Debalê, símbolo da preservação ambiental dos mares e da antiga iluminação da cidade de Salvador, assim como o bloco afro é simbolo de resitência negra contra o racismo.

Logo, em seguida, em data flutuante em fevereiro, ou no início de março, vem a festa da carne, no qual se permite ser profano totalmente, pois que para os católicos durante essa semana momesca só se pensa apenas em festa, música, dança e todos os prazeres mudanos. Não obstante, não demora muito, pois logo inicia-se o período da quaresma, época de reflexão entre os católicos; de procissões barrocas e autos da morte de Cristo. Os atabaques dos terreiros silenciam para louvar o Corpo Santo morto. Contudo, no sábado de Aleluia, reinicia-se as festas com carnavalização do interior, os micaretas; que estão, atualmente, em decadência, por motivos econômicos dos municípios.

Em maio, Nossa Senora é cantada e lovada até o dia 31, nas casas, igrejas até o dia da sua coroação, enquantos os tambores dos candomblés vibram pela cidade, de Itapuã a Ribeira. Em junho, a fé se renova entre trezenas cantadas com mungunzás, bolos e canjicas em louvor a Santo Antônio e feijoada para Ogum. E não tarda a chegar o mês de Agosto de Deus, com devoções, penitências e promessas a serem pagas ao sehor das palhas de fibras da costa da África que varrem as doenças. É o mês de se vestir de branco nas segundas feiras para louvar Obaluaê. Orixá que é considerado como o rei da terra e de todos os espíritos do mundo, que oculta o mistério da morte sobre a sua ráfia de palha-da-costa.

Os devotos de São Roque e Obaluaê, vestidos de branco e caminham, até a colina da Igreja de São Lazaro, no bairro da Federação, onde habita a imagem de São Roque. São Lazaro é associado à Omolu e São Roque a Obaluaê no sincretismo religioso, cuja festa é no dia 16 de agosto. Obaluaê é associado ao aspecto jovem de Omolu. Os fiéis vão para o largo da igreja, onde encontram filhos e filhas de santo com balaios e tabuleiros enfeitados com palha-da-costa contendo as pipocas, grãos de milhos abertos no fogo com areia cessada, chamados de “flor do velho” ou duburu.

As pipocas representam as feridas de pele desse Orixá, e quando passadas no corpo em forma de banho, retiram as aflições das doenças. Os filhos-de-santo torram o milho numa panela de barro com areia, até que abram em forma de flor. Em seguida, são colocados em cestos, balaios de palhas, ou num tabuleiro enfeitado com a ráfia de palha-da-costa, laguidibas e brajas de búzios, ornamentados com grandes tiras de panos brancos bordados em rechelieu ou em estampados chitões. Realizam a obrigação de “pedir esmolas” pelas ruas, alguns descalços ou com pequenos chinelos de couro, distribuindo pipocas para custear a compra dos ingredientes para a festa de Obaluaê, o Olubajé.

Setembro chega divertindo a todos com os graçejos dos meninos gêmeos. Os santos gêmeos católicos São Cosme e Damião têm seus festejos na sua Igreja no bairro da Liberdade e são sincretizados no candomblé com os Orixás africanos Ibejis, nascido de dois, controlam uma sociedade secreta de crianças egbé àbikú, aqueles que nasceram para a morte, ou seja, eles têm um pacto de retornarem sempre para o Orum, para brincar com seus camaradas, por isso aconselha-se fazer oferendas a Ibejis e colocar guizos nas pernas para que as crianças não ouçam o chamado de sua turma para brincar e permaneçam na terra. Eles são festejados no dia vinte e sete de setembro, com um banquete das comidas de azeite, o famoso caruru acompanhado de doces e balas.

E assim, é a Bahia de todos os Santos, Santas, Orixás, Caboclos, Marinheiros e Sereias, que mesmo com o ataqques de segmentos religiosos que buscam mitigar a força dos ancestrais a resistência se efetiva seja no terreiro, na igreja ou na rua. Fé e festa são aqui irmãs siamesas, não se pode pensar em uma religiosidade em que os tambores vibrem com a emoção, não faltando nunca a comida como elo de ligação entre os mortais e os seres divinos da Bahia. Salve a Bahia senhor do Bonfim!

Fábio Lima é antropólogo

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