Filho do primeiro goleiro do Bahia, Joca foi um defensor da cultura no estado

Jornalista, escritor e poeta, João Carlos Teixeira Gomes morreu aos 84 anos e deixou um legado de modernidade cultural para a Bahia

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  • Da Redação

Publicado em 20 de junho de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Foto: Olívia Soares/Divulgação O último livro publicado por João Carlos Teixeira Gomes é um retorno à origem. Em dezembro do ano passado, Joca, apelido afetuoso, lançou ‘Geração Mapa’, um ensaio sobre a força revolucionária de um grupo de jovens e a lufada de modernidade, a partir deles, nas produções artísticas e intelectuais do estado.

Na madrugada dessa sexta-feira (19), Joca morreu de falência múltipla dos órgãos, aos 84 anos. Era membro da Academia de Letras da Bahia, ocupante da cadeira 15, e colecionava um sem-número de predicados e ofícios, desempenhados com igual destreza e compulsão: jornalista, poeta, memorialista, biógrafo, professor, ficcionista, ex-secretário de governo, ensaísta e crítico de arte.

A quantidade de virtudes encontra paralelo no movimento criado na juventude. “Era uma característica da ‘Geração Mapa’ ter vários braços artísticos. No cinema, tem a produtora Yemanjá. Na literatura, a editora Macunaíma e seus livros artesanais de estética única. Eles passearam ainda pelas artes plásticas, teatro e pelo jornalismo, revolucionando tudo”, explica Kátia Borges, colunista deste CORREIO, e que, em 2019, defendeu a tese de doutorado sobre a Geração Mapa.

A talentosa turma começou a ser formada no Colégio Central, em Salvador, em 1954. A escola era um núcleo de qualidade do ensino público do estado, com uma forte tradição humanística e cultural. A liderança da trupe cabia ao “jovem estudioso de cinema Glauber Rocha, que ingressou naquela escola pouco depois de completar 14 anos de idade”, escreve Joca, no último texto.

Juntaram-se outros brilhantes, igualmente rebeldes. Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Fernando Rocha, Jaime Cardoso, Calasans Neto, Sante Scaldaferri e o próprio João Carlos Teixeira Gomes – que já gozava de prestígio pelo afamado sobrenome. Seu pai, Teixeira Gomes, foi o primeiro goleiro do Esporte Clube Bahia, campeão baiano no ano de fundação, em 1931. Joca era sócio do Bahia e foi homenageado pelo clube (Foto: Divulgação) Da turma inicial aglutinaram-se outros, reverberando a força do movimento. Carlos Anísio Melhor, João Ubaldo Ribeiro, Lina Gadelha e o poeta Florisvaldo Mattos. “Joca era um dos luminares do grupo, pelo tanto de inteligência, conhecimento cultural e literário e qualidade da escrita. O sentimento de camaradagem eleva-se também como um dos traços de sua personalidade, sempre inquieta”, escreveu Mattos, após a notícia da partida do amigo.

Levado por Glauber, Joca foi trabalhar no Jornal da Bahia, em 1958. Começou como repórter policial e, ao deixar o periódico, em 1977, já tinha sido chefe de reportagem, editor-chefe e, por fim, editorialista. No tempo que dirigiu a redação colecionou divergências com o então governador Antonio Carlos Magalhães (1927-2007).

“A morte de Joca encerra uma era do jornalismo baiano. Não conheci um jornalista com tantas virtudes e repertório cultural. Além de tudo, um valente”, diz Olívia Soares, jornalista e amiga próxima do escritor.  Joca com a amiga Olívia Soares (Foto: Acervo pessoal) Kátia Borges ressalta que, durante o tempo no Jornal da Bahia, Joca foi responsável por modernizar a imprensa local. “O Jornal da Bahia importa o modelo americano do lead, da hierarquização da notícia, que os jornais cariocas já faziam no Brasil, mas na Bahia ainda não existia nada assim. Joca estava sempre mergulhado nestes contextos de modernidade, trazendo ventos novos”, pontua.

Livros na cozinha Em sua produção literária, sublinha o jornalista Cláudio Leal, destacam-se obras de relevo para compreender o percurso luminoso de expoentes da cultura nacional.

“Sua biografia de Glauber Rocha permanece como livro obrigatório a quem deseja conhecer a vida do cineasta, assumindo a perspectiva de testemunho geracional, com aspectos biográficos que só Joca, o homem, podia extrair do Glauber cheio de pulsões românticas. Por sua vez, 'Gregório de Mattos, o Boca de Brasa' tornou-se um clássico sobre plágio e criação intertextual, definido pelo medievalista Segismundo Spina como 'o mais erudito, mais profundo, mais bem escrito livro sobre o poeta satírico'”. O cineasta Glauber Rocha e Joca eram grandes amigos (Foto: Acervo pessoal) Colecionador voraz, era um pesquisador obstinado da história da Segunda Guerra Mundial. Amava também os textos sobre futebol e suas jornadas improváveis, com heróis trágicos e epopeias mágicas. 

Em casa, mantinha livros, discos e filmes em profusão. “No apartamento de Joca, na Pituba, tinha livro dentro dos armários da cozinha, no banheiro e até dentro do fogão. Ele tem um acervo enorme. Antes de morrer, me disse que pretendia doar tudo para a Neojiba”, conta Olívia.

Dono de um humor tão efusivo quanto a própria escrita, após algumas tentativas frustradas (“Tubarão da Pituba”, “Leão do Leblon”), se autointitulou o “Pena de Aço”. E obrigou, a partir de então, todos os amigos a chamá-lo assim.

“Você acha que Clemenceau virou ‘O Tigre’ por bondade dos amigos? Ora, não seja ingênuo! Ele próprio tratou de divulgar esse epíteto”, descreve Leal.

A potência de sua escrita, de fato, carregava o peso de uma liga metálica afiada, embora afável. Certa feita, morando em um apartamento alugado no Rio, e tendo como fiador o amigo João Ubaldo, recebeu um aviso de aumento na mensalidade. “Ele escreveu uma carta tão bonita para a proprietária que ela desistiu de cobrar o acréscimo”, conta Olívia.

Torcedor do Bahia, herança do pai, o último desejo de Joca era ter a bandeira do clube sobre o caixão, o que foi prontamente providenciado pela direção, com os dizeres: “Joca. Pena de Aço”. A cerimônia de cremação foi na tarde dessa sexta (19), no cemitério Bosque da Paz.

João Carlos Teixeira Gomes deixa três filhos e milhares de livros espalhados pelo mundo e no fogão de casa.