Genealogia do mal secreto e do obscuro objeto do desejo

Vivi infância feliz e infeliz – a bordo do mesmo modus vivendi no qual navego até hoje – assoviando e chupando cana

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  • Da Redação

Publicado em 5 de maio de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Crianças têm segredos que nem aos brinquedos confessa. Em tenra idade, entre 6 e 7 anos, desejos sexuais inconfessáveis me invadiram – e me nocautearam – e me fizeram ter medo de pensar no que sentia – e quando pensava no que sentia eu morria de medo - e tinha  vontade de morrer. [Fui precocemente ‘gauche’ – a ‘bença’, tio Drummond! Evoé, Minas! Evoé, monas!]

Pensei em contar para minha mãe o que se passava na minha cabeça. Talvez nem ela entendesse o rumo da prosa: vivia-se época longínqua na qual as peraltices libidinais se davam por baixo do pano, nunca às escâncaras. Ou, quiçá, minha mãe entendesse – alma sensível que era – e  sofresse demais com minhas revelações – e eu não queria lhe causar nenhum tipo de sofrimento. [Calei-me. Aquele segredo seria meu e de mais ninguém].

Nessa época a cantora Emilinha Borba cantava marchinha carnavalesca no velho rádio Mullard da sala de jantar do velho casarão. De autoria de Brasinha e Newton Teixeira, começava assim: ‘A patroa me contou um segredo, que eu não conto pra ninguém, pela que a patroa me contou, está esperando neném’. 

Delirei. Se contasse o meu segredo para alguém, esse alguém poderia contar a outro alguém – e seria massacrado. [Eu não estava esperando neném, antes estivesse, mas o meu segredo, espírito dessa época de pudicícia – mais no discurso do que na ação, ressalte-se – era considerado – e eu percebia, e eu pressentia – abominável, execrável, inominável].

Mesmo mortificado, não soçobrei – e vivi, na medida do possível e do impossível, infância feliz e infeliz – a bordo do mesmo modus vivendi no qual navego até hoje – assoviando e chupando cana. [Para me consolar, bobinho que era, cheguei a imaginar: o objeto desse meu mal secreto desapareceria com o decorrer do tempo – não desapareceu].

No começo da adolescência esse segredo me pesava toneladas. Precisava dividir aquele ‘fardo’. Com quem, com quem? Então a minha redenção se deu. Aos 14 anos, tinha três amigos tão queridos e tão próximos e tão camaradas que resolvi lhes revelar o desejo que me ‘maculava’. Foi decisão meio camicaze – eles gostavam de meninas. Durante noites insones eu me perguntei: - E se eles contarem o meu segredo para o colégio inteiro?

Apostei no milhar. Poderia me ferrar. Ou não. Então em noite de meio de semana, sentamo-nos os quatro no parapeito de casa vizinha à minha, e soltei o verbo. Eles se entreolharam, sorriram com cumplicidade, e R. falou: - Tranquilo, Roger, ninguém vai saber. [Jamais esqueci a atitude redentora desses três garotos].

No ano seguinte vim estudar o colegial nesta Salvadores – ultralibertária se comparada à minha puritana cidadezinha – e minha redenção se efetivou. [Era 1969. Tinha 15 anos. Diante de país destroçado pela ditadura militar sacramentada no ano anterior pelo draconiano Ato Institucional Número 5 – o famigerado AI-5 –, o ‘desbunde’ se fez carne e o troca-troca de segredos em geral e otras cositas más viraram nossas cabeças juvenis pelo avesso]. [Depois eu conto mais].