Gerônimo revela propina em ‘É D’Oxum’ e lança profecia sobre 1º governador negro

Músico previu operação da PF no TJ-BA 33 anos antes dela acontecer

  • D
  • Da Redação

Publicado em 24 de novembro de 2019 às 05:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Gerônimo pediu água. “Primeiro a gente faz a cama”, disse. Depois de molhar a garganta, solicitou ao garçom uma dose de Red Label, com bastante gelo. “Cerveja não. Dá vontade de mijar o tempo todo”.

Aos 66 anos, o cantor é prosa boa. Conversa, ele gasta fácil. Mas, pra cantar, regula a voz. “Sigo a moral das moças do Pelourinho. Dinheiro na mão, calçola no chão. Dinheiro não viu, calçola subiu”.

Ele foi o convidado (sem cachê pago) do Baianidades Entrevista, que fez parte da grade da segunda edição do Festival Glauber Rocha, no bar Velho Espanha, nos Barris. A coluna Baianidades completa um ano em fevereiro. Desde agosto estreou um modelo de entrevistas presenciais, com figuras marcantes da história da Bahia. André Uzêda e João Gabriel Galdea, titulares da coluna Baianidades, entrevistam o cantor Gerônimo (Foto: Júlia Sarmento) Entre tantos temas, Gerônimo revelou um mistério semântico na terceira estrofe da sua música-hino “É D’Oxum”, composta em parceria com Vevé Calasans.

Seja tenente ou filho de pescador

Ou importante desembargador

Se der presente é tudo uma coisa só

“Isso é uma denúncia de propina no judiciário baiano. Você vê que quando eu falo a palavra desembargador, logo depois puxo para a palavra presente. Presente é o que? É o agrado. Aquela velha propina. Porque é assim que as coisas funcionam na Bahia”.

Essa entrevista foi dada na noite da última segunda-feira (18).  Na manhã de terça (19), a Polícia Federal deflagrou a Operação Faroeste para desarticular suposto esquema criminoso de venda de sentenças envolvendo juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia. Foram cumpridos quatro mandados de prisão e 40 de busca e apreensão.

“É D’Oxum” estourou em todo o país em 1986, como trilha sonora da novela Tenda dos Milagres, da TV Globo.

Portanto, há 33 anos (idade de Cristo) se formava uma profecia.

Segunda revelação Definitivamente não é a primeira vez que Gerônimo antecipa fatos e tendências. Em uma entrevista, em 2009, ao jornalista e poeta James Martins, o cantor disse que “banda de pagode é tudo igual”.

“O cara que canta tem que ser malhado e musculoso. Pra isso tem que deixar as mulheres excitadas, com o clitóris na testa (...) Isso vai evoluir tanto que uma hora dessas o cara vai mostrar o cacete, um pedaço de pica da porra. E a mulher vai chupar o pau do cantor”, previu.

Em meados de novembro deste ano, ou seja dez anos depois da profecia de Gerônimo, duas mulheres praticaram sexo oral no vocalista da banda “Uh Rei das Novinhas”. O ato foi em cima do palco, durante um show (de horrores) em Aracaju, capital de Sergipe. Cantor Gerônimo falou sobre suas profecias e revelou bastidores da música (Foto: Júlia Sarmento) James Martins assistiu ao vivo o Baianidades Entrevista, lá nos Barris. Antes, havia escrito um texto destacando a garganteada profecia do músico.  

Negro no poder Para testar a capacidade futuróloga de Gerônimo, eu e João Gabriel Galdea, pedimos um presságio materializado ali em nossa frente. Algo que pudesse acontecer amanhã ou mesmo daqui uma década. Gerônimo disse que deseja ver um negro à frente do poder na Bahia.

Perguntei sobre Edvaldo Brito, jurista negro, que já foi prefeito de Salvador (durante a Ditadura Militar), de 1978 a 1979.

“Foi muito pouco tempo. Quero ver um preto eleito pelo povo. De preferência ao governo do estado, onde o poder se concentra de maior forma”.

Consciência negra Ainda não se sabe se o vaticínio de Gerônimo vai se cumprir ou não. Esta coluna, desde já, fica como calção suspenso para um documento histórico.

Nesta mesma semana da profecia e da operação da Polícia Federal no TJ, em 20 de novembro, foi comemorado o Dia da Consciência Negra. Desde que Thomé de Souza foi designado, em 1549, a fundar Salvador e assumir como primeiro governador geral da colônia, a Bahia já teve 167 mandatários (entre Colônia, Império e República).

Nos registros, em absoluto, nenhum deles era negro.

Os ventos, no entanto, parecem soprar em novas direções. Neste mesmo novembro, 12 estudantes negros se formaram médicos pela Universidade Federal do Recôncavo (UFRB). Conversei com alguns deles para uma reportagem publicada pela Folha de S. Paulo.

Vindos de família pobre, eles relataram dificuldades durante o curso, como trabalhar em turno oposto a faculdade, vender cachorro-quente, brigadeiros ou canetas. Falaram também de casos explícitos de racismo, envolvendo professores, colegas e — mesmo já formados — também pacientes.

“Parecem custar acreditar que somos médicos. Somos postos à prova a todo instante. Sempre há uma desconfiança maior”, diz o médico Vinícius Miranda, 27 anos.

Durante a faculdade, eles criaram um grupo de WhatsApp para ajudar uns aos outros.

“A gente passou a conversar muito, trocar experiências e a ter uma noção coletiva de como eramos tratados e de como deveríamos agir em resposta a isso. Depois, o grupo passou a se ajudar mutuamente. Falávamos de vagas de emprego, cursos, oportunidade. Foi um momento muito importante porque a gente passou a não se sentir tão sozinho”, diz Letícia Almeida, 32. Estudantes negros da URFB fizeram fotos juntos após a formatura no curso de Medicina (Foto: Antônio Wagner / Divulgação) O modelo de ajuda mútua remete, de algum modo, às irmandades negras formadas no período da escravidão.  A prática do candomblé era proibida, mas os negros podiam se organizar em confrarias católicas participando de eventos sociais e cuidando das feridas um dos outros. Uma das Irmandades mais famosas foi a da Boa Morte, apenas com mulheres negras. Funcionava em Cachoeira, cidade do Recôncavo. Desde 2010, é Patrimônio Imaterial da Bahia.

“Participar de uma Irmandade apresenta-se para muitos escravos como um oásis no deserto de humilhações que lhe era imposto. Ser irmão em uma irmandade era uma forma de ter prestígio, de resgatar sua condição de homem”, escreve a historiadora Elizete da Silva, no artigo “Irmandade negra e resistência escrava”.

É muito representativa a formatura de estudantes negros em uma universidade federal na Bahia. Os estudos de medicina, por aqui, sempre estiveram associados às famílias ricas e tradicionais.

A Faculdade de Medicina da Bahia, depois incorporada pela UFBA, é a mais antiga do país. Foi fundada em 1808, logo após a chegada da família real portuguesa ao Brasil.

Para o professor Antônio Alberto Lopes, no entanto, há um ganho relevante para a ciência quando jovens médicos emergem de localidades mais humildes.

“O pesquisador que viveu em comunidades em desvantagem social está mais apto para identificar fatores que merecem investigação, como acidentes vasculares cerebrais e doença renal crônica”.

Empossado em setembro deste ano na Academia de Medicina da Bahia, Lopes é negro, estudou em escola pública e nasceu no subúrbio de Salvador. Tem doutorado pela universidade de Michigan (EUA) e é professor da Ufba.

A força que mora n’água não faz distinção de cor.

E toda cidade é d’Oxum.