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Da Redação
Publicado em 26 de junho de 2022 às 17:54
- Atualizado há um ano
Chico Buarque foi, desde que surgiu, o menino prodígio, das letras incríveis, cronista de nosso amor, política e cultura, ao ponto de ter seu lado músico sombreado pela incrível habilidade de suas palavras.
Caetano Veloso era uma espécie de outra face de Chico, muitas vezes seu oposto e outras seu complemento. Experimentando, provocando, usando do discurso direto, expondo-se em sua autobiografia e nos riscos de uma obra propositalmente desigual, falou e fala de tudo, se mete em tudo, e leva as palavras na frente, ao ponto de até não parecer tão popular em suas canções como ele é. Sua pouca destreza com o violão, que ele mesmo sempre faz questão de pontuar, faz que seu lado músico também seja sombreado pela incrível habilidade de suas palavras.
Desde pequeno, me incomodava a polêmica sobre quem era melhor: Chico ou Caetano. Gilberto Gil sempre era deixado de lado.
Com o tempo, percebi que em conversa de músicos, sempre que se falava em revoluções, inovações, rupturas, ao se citar Gil, que havia feito praticamente tudo antes de todos, vinha sempre a frase: “Gil não conta”.
O estranhamento de muitos com Gil ter sido o primeiro compositor popular a entrar para a Academia Brasileira de Letras, num país que temos Chico e Caetano, traz um fato curioso. Ao contrário dos dois, Gil sempre foi visto como o músico. O que toca muito e revolucionou o violão. O que se meteu com todos os ritmos possíveis e dominou do roquenrou ao reggae, do xote ao samba. O que faz firulas com a voz. O mais musical de todos os três, sem dúvida. Todos sabem o quanto admiro Chico e Caetano, então posso escrever o que vou escrever sem parecer estar pondo em disputa ou dizendo quem é melhor que quem; até porque essa discussão é oca e tola.
A questão de Gil é que sua música e sua letra saem fácil. Escorrem por nossos ouvidos. Parecem não ser rebuscadas e racionais como a dos outros dois, e mais à serviço da canção, descompromissadamente. João Cabral falava que quanto a catar palavras, ao contrário de catar feijão, deveria haver sempre uma pedra que incomodasse, açulando a atenção e iscando-a com o risco.
Aparentemente, Gil parece catar o feijão e cozinhar ele num tempero tão conhecido que, de tão exato, sequer chama a atenção à receita, de tão feijão ideal que ele faz. Ao contrário de outros letristas, que esfregam sua poética em nossa cara, a poesia dele geralmente flutua com as notas e parece se dissipar na canção.
Eis aí o engano. Basta buscar nas redes aquelas postagens pedindo qual seu verso preferido de Gil, como fazem com qualquer um, e começam a surgir uma beleza profunda de imagens, ideias, formas, alegorias, metáforas, delicadezas. Por trás de letra de Realce, ou Toda menina baiana, ou Esotérico, canções “fáceis” e animadas, escondem-se versos de extrema poesia e força, denúncia, reflexão existencial e/ou filosófica.
Tudo já foi dito sobre Gil já em seu disco de 1967. Impressionante como o que Torquato, Capinan, Caetano e Chico escrevem sobre ele é ainda atual. Ou o texto de Caetano para o songbook de Gil. Ou a contracapa do mesmo livro, escrita por Caymmi.
Os maiores já falaram tudo. E Elis abre o programa Ensaio falando que talvez ele seja o mais completo compositor.
Eu precisaria de centenas de páginas para falar sobre a importância notória (como disse Caymmi) de Gil para a nossa música. E para mim. Da minha relação com ele, com a música e a palavra que brotam dele, e de todas as especulações que tenho sobre uma maior dimensão de sua importância para o Brasil. Mas na polêmica de quem é o melhor isso ou aquilo, essa bobagem comparativa que excita os tolos, eu apenas tenho a dizer, nestes 80 anos completos, e na dimensão cósmica que isso toma, o que sempre ouvi nas conversas de músicos:
Gil não conta.
Texto originalmente publicado no Facebook e replicado aqui com autorização do autor.