Grupo de baiana que sequenciou coronavírus tenta entender propagação após reaberturas

Cientista foi a convidada desta terça do programa Saúde & Bem-Estar do CORREIO

Publicado em 27 de outubro de 2020 às 21:19

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Imagem: Reprodução/Instagram

Responsável pelo mapeamento dos primeiros genomas do novo coronavírus no Brasil, a Drª Jaqueline Goes e a equipe da qual faz parte está agora com um novo desafio: entender a propagação do vírus com a progressiva reabertura de atividades econômicas no Brasil. Baiana, doutora em Patologia Humana e Experimental pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), ela foi a convidada desta terça-feira (27) do programa Saúde & Bem-Estar do Jornal CORREIO, no qual comentou sobre a trajetória da pesquisa, o status da pandemia e os entraves de ser mulher e negra na ciência.   Pesquisadora associada do Centro de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT/USP), Jaqueline conta que o sequenciamento do DNA de amostras do vírus não parou desde que o primeiro caso foi mapeado — em apenas 48h. O grupo já publicou um artigo no qual foi feita análise de 427 amostras do coronavírus e atualmente os cientistas se dedicam a olhar para um segundo momento no país.

“Agora a gente está caminhando para analisar a segunda fase da pandemia, vindo de junho para cá, para entender o que está acontecendo no Brasil em termos de propagação do vírus e infecção com a abertura do comércio e de estabelecimentos não comerciais como museus. Algumas escolas também já estão pensando em retornar e isso vai trazer um impacto significativo. Quando [as atividades pararam], a gente também identificou uma redução na transmissão e agora espera-se que haja um aumento na transmissão, ainda que isso não represente uma segunda onda”, explicou. 

A cientista voltou a explicar que o sequenciamento consiste na identificação das proteínas que o organismo guarda em sua estrutura. Basicamente, é a forma como se descobre as letrinhas dos filamentos de DNA e RNA. Com isso, é possível rastrear as mutações do vírus e essas mutações ajudam a entender em que etapa da pandemia nos encontramos. Na época que os primeiros casos foram confirmados no país, esse sequenciamento ajudou a entender a partir de quais locais a covid-19 foi introduzida por aqui.

“Tudo era muito novo. No fim de fevereiro, a gente sabia que tinha vírus circulando na Europa e alguns países da Ásia, que estavam com grande surto, mas pouco se sabia como esse vírus estava circulando, quais as mutações que apresentavam. Ao sequenciarmos, descobrimos uma série de informações que não só corroboraram com a história clínica e de viagem dos pacientes iniciais, como também corroboravam com o que a gente esperava que estivesse acontecendo em relação à introdução do vírus no Brasil”, lembrou ela.

O desenvolvimento em curso das vacinas contra o vírus em todo o mundo dependem muito da descoberta desse DNA para entender como este organismo se expressa e interage com o corpo humano. Na avaliação dela, a colaboração entre pesquisadores e a divulgação da produção científica foram notadamente impulsionadas pela necessidade de respostas para a doença.

Se antes instituições acadêmicas já tinham tradição de parceria, a pandemia mostrou que o trabalho conjunto traz resultados maiores e mais rápidos, acredita Jaqueline. Os sequenciamentos feitos pelo IMT/USP, inclusive, estão sendo colocados diretamente num grande banco de dados que pode ser acessado por pesquisadores de todo o mundo.

O financiamento das pesquisas do centro do qual a doutora Jaqueline faz parte vem de uma co-participação entre o governo estadual de São Paulo e do Reino Unido, e não chegou a sofrer cortes. Fazendo vigilância de genoma desde 2016, a pesquisadora defendeu que a ciência não deve ser pensada de forma imediatista, mas sim a longo prazo.

“Investimentos feitos há quatro ou cinco anos estão dando resultado agora. Comecei com essa tecnologia em 2016 e é agora que a gente tá vendo o resultado desse treinamento que me foi dado, desse investimento que foi feito em mim”, pontuou.

Racismo estrutural: ‘tenho dificuldades em aceitar ser a única’

“Eu não conseguia ter essa percepção tão forte e séria do quanto que a minha figura como mulher, negra, nordestina, cientista traria um impacto. A falta de representatividade é tão significativa que é isso, se eu olho ao meu redor, eu não encontro pessoas como eu. Ter sido colocada como a cientista negra, baiana, brasileira, foi difícil e ainda é difícil, tenho dificuldade em aceitar esse título, em ser a única porque eu não gostaria que fosse assim e espero que cada vez mais mulheres negras representem, mas deu para ter uma noção de que isso é a realidade. Preciso confessar que o assédio é grande à minha pessoa, não consigo atender às demandas de todos justamente por essa falta de representatividade, de outras mulheres que possam dividir essa função comigo. Isso me faz pensar por qual motivo e a gente sabe que tem uma questão social e histórica que explica. Uma das coisas que mais me fez aceitar a repercussão foi a necessidade de representatividade.

A gente não tem uma estrutura que vai tratar de forma igual brancos e não-brancos. Sofri muito ao longo da minha trajetória e eu não entendia que era um sofrimento imposto pela minha condição racial, achava que era destino, porque tinha que ser daquele jeito mesmo e que eu tinha que me esforçar para alcançar uma posição melhor. Eu tive que dobrar minha dedicação para alcançar a equipe, eu perdia noites no laboratório ou estudando, me preparando, tentando corresponder à expectativa, essa dedicação foi algo além do que precisaria ser, mas que sem dúvida foi importante para o meu crescimento pessoal. Hoje, para quem vem depois de mim, digo que é preciso se dedicar, mas também é preciso se impor que o tratamento e oportunidades têm que ser iguais"