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Da Redação
Publicado em 15 de agosto de 2022 às 05:00
- Atualizado há um ano
“Papai, por que aquelas pessoas estão pedindo comida? Elas não têm casa?” É impossível ouvir perguntas como essas de uma criança e não engasgar. A miséria é a síntese do fracasso da espécie humana e, mais especificamente, da sociedade onde se insere. Porém, a resposta às questões iniciais se torna mais difícil quando percebemos que não se trata de simples incompetência. É crueldade e desprezo. Poucas coisas podem ser mais cruéis que a decisão do Presidente da República, corroborada pelo Congresso, de permitir que bancos descontem direto da folha de pagamento quase metade da renda das pessoas mais necessitadas do país.
Quando a Ditadura Militar acabou, havia muita esperança de que o Brasil se tornasse um país mais inclusivo. A nova Constituição estabeleceu regras e princípios de interpretação para que todas leis buscassem os objetivos da república, dentre os quais “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Nesta linha, previu a “garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”. Previu também que o salário mínimo seria “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.
O salário mínimo, na verdade, nem garante aquele mínimo. Ainda assim, obedecendo a Constituição, foi criado o Benefício de Prestação Continuada, apelidado de BPC ou LOAS, para garantir a sobrevivência de pessoas com deficiência e idosos, com renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo por pessoa. Percebe-se que são pessoas com dificuldades físicas que se convertem em um desafio maior para existir na sociedade. Por isso, a lei que regulamenta a assistência social tem como princípio a “supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica”.
Mas, para quem não se importa nem com a morte dos outros, que valor teria um princípio? Em 2022, primeiro através de medida provisória e depois através de lei, nosso país permitiu que 45% desse valor que deveria garantir o mínimo a quem mais precisa de ajuda, nem passasse pelas mãos deles e fosse transferido diretamente aos bancos ou instituições financeiras. A alimentação ou a saúde podem ficar para depois. Primeiro, deve-se garantir os lucros de quem emprestou dinheiro a juros. Não esqueçamos jamais que sempre existem os juros.
Compreende-se melhor essa medida quando se vê que ela é acompanhada de permissão idêntica de exploração e retenção da renda dos beneficiários do auxílio Brasil. Já era evidente que a recente Emenda Constitucional, que ampliou o valor do auxílio temporariamente apenas para o período eleitoral, não pensava nem um segundo na ajuda as pessoas, mas apenas na reeleição do atual Presidente da República (desculpem, ninguém é tão burro para não ver). Todavia, quando se analisa em conjunto com essas outras medidas, percebe-se que, na realidade, a mudança cria um auxílio-banqueiros.
Infelizmente, hoje somos governados pela insensibilidade. Ela já poderia ser pressentida na sempre famosa defesa da tortura, do espancamento, do linchamento, da ditadura e da morte ou no igualmente famoso ódio aos programas sociais e à luta contra o preconceito. Falhamos enquanto país em perceber isso. Permitimos que a desumanidade fosse tratada como piada, ou pior, franqueza e honestidade. Agora pagamos um preço caro.
A insensibilidade mata. Mata pela fome, pela ganância, pelo descaso e pela bala. Quando lembramos dessa história, até parece ingênuo se surpreender com a venda da vida e da dignidade de idosos, pessoas com deficiência e miseráveis em um ano eleitoral. Mas precisamos preservar a capacidade de indignação e não parar de perguntar: será que há algum limite para lucrar com a miséria?
Rafson Ximenes é defensor-público geral da Bahia