HBO acerta com 'Chernobyl'. Mas o que é verdade e o que é ficção na minissérie?

Coprodução com Sky, mini exibe último episódio na semana que vem

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  • Carol Neves

Publicado em 30 de maio de 2019 às 09:00

- Atualizado há um ano

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(Foto: Divulgação/HBO) Coprodução da HBO com a Sky, a minissérie "Chernobyl" exibe na segunda-feira (3), na HBO Brasil, seu último episódio. A trama aborda, claro, o acidente na usina nuclear de Tchernóbil, que resultou em 31 mortos diretamente e inúmeros de maneira indireta. O desastre aconteceu em 1986, na Ucrânia, então União Soviética. O governo inicialmente tentou minimizar a tragédia, o que irresponsavelmente comprometeu mais vidas. 

A minissérie trata o acidente nuclear com o peso que ele merece e a história, que é conhecida mas não excessivamente explorada na TV ou cinema, é mesmerizante envolvente. Não se assuste se depois de assistir cada episódio você sinta vontade de saber mais sobre o acidente e entre em um espiral com o tema. Uma leitura recomendada é o livro "Vozes de Tchernóbil: A História Oral do Desastre Nuclear", da vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch (falaremos mais dele abaixo).

"Chernobyl"  é em geral bastante preciso, mas como é uma versão dramatizada a minissérie toma algumas liberdades artísticas para contar a história. O trabalho de recriação da URSS impressiona, sotaque inglês à parte, e a maioria dos personagens realmente existiu - há uma grande exceção. Muitas coisas ainda se tenta entender e há controvérsias inclusive sobre o que realmente causou a explosão. "Eu sempre dei preferência ao menos dramático porque as coisas que a gente sabe com certeza que aconteceram são naturalmente dramáticas", contou o roteirista e produtor Craig Mazin, responsável pela minissérie, à Variety.

Veja o que é verdade e o que não é na versão para TV.VERDADE Valery Legasov (Jared Harris) A série abre mostrando Legasov, químico que comandou a investigação da tragédia, gravando fitas cassete para contar o que aconteceu de verdade no desastre nuclear e toda a pressão política que ele sofreu. Dois anos depois do incidente, ele comete suicídio em casa, se enforcando. Tudo isso é real e 10 anos após ele foi premiado postumamente como herói da federação russa pelo presidente Boris Yeltsin por sua "coragem  e heroismo" na investigação do desastre. (Foto: Divulgação) FICÇÃO Ulana Khomyuk (Emily Watson) Essa personagem nunca existiu na vida real e é uma mistura de vários outros pesquisadores que trabalharam para tentar evitar algo ainda pior depois da explosão do núcleo na usina. Mazin defendeu em entrevista uso de uma personagem feminina para esse papel. "Uma área em que os soviéticos eram na verdade mais progressistas que a gente era a da ciência e medicina. A União Soviética tinha uma grande porcentagem de médicas mulheres", afirma.  (Foto: Divulgação/HBO) VERDADE Boris Scherbina (Stellan Skarsgard) Boris Scherbina era um político que atuava no Conselho de Ministros da União Soviética quando aconteceu a tragédia. Ele foi responsável por fiscalizar a reação ao acidente nuclear. Foi ele quem mandou evacuar Pripiat, hoje uma cidade fantasma, e também a zona de 30 km no entorno da usina. Scherbina morreu em 1990. (Foto: Divulgaçaõ/HBO) VERDADE Anatoli Dyatlov (Paul Ritter) Dyatlov foi o engenheiro responsável pelo teste que era realizado em Chernobyl no dia do desastre. Ele foi condenado a dez anos de prisão por "negligência criminal", ficando cinco anos preso. Fora da cadeia, escreveu um livro afirmando que a culpa pela tragédia foi essencialmente uma falha de projeto da usina. Em 1992, um e ano depois de ser solto como parte de uma anistia, o engenheiro falou ao The Washington Post de Kiev, onde estava morando, e afirmou que ele e os outros operadores da usina foram usados como "bodes expiatórios" para ocultar os problemas com o reator. "Me vi confrontado por uma mentira, uma grande mentira que foi repetida vezes e vezes pelos líderos do nosso governo e também por simples técnicos. Essas mentiras sem vergonha acabaram comigo", afirmou. "Não tenho a menor dúvida que os projetistas do reator descobriram a verdadeira causa do acidente logo, mas fizeram tudo para empurrar a culpa nos operadores". De todas as pessoas na sala de controle, cinco tiveram mortes agonizantes por conta da radiação logo nos dias após a explosão. Dyatlov recebeu uma grande dose de radiação e, em 1992, era considerado inválido, ficando exausto após caminhar apenas alguns passos. Ele morreu em 1995 por conta de problemas cardíacos. (Foto: Divulgação) VERDADE Lyudmilla Ignatenko (Jessie Buckley) Mulher do bombeiro Vasily Ignatenko, Lyudmilla realmente existiu. Embora a série modifique alguns detalhes da sua história, ela é retratada de maneira essencialmente igual ao relatado por Lyudmilla no livro "Vozes de Tchérnobil". O depoimento dela é o primeiro do livro e ela relembra sua vida de recém-casada com Vasily, o dia da tragédia, as tentativas de impedi-la de acompanhar o marido após o acidente, a morte e enterro de Vasily. Depois disso, Lyudmilla ainda perdeu a filha, que morreu pouco depois de nascer. Ela teve um filho de outro relacionamento e passou a viver em Kiev (Ucrânia), em uma região apenas para sobreviventes do acidente. 

Leia um trecho do depoimento de Lyudmilla no livro:O meu marido começou a mudar; cada dia eu via nele uma pessoa diferente... As queimaduras saíam para fora... Na boca, na língua, nas maçãs do rosto; de início eram pequenas chagas, depois iam crescendo. As mucosas caíam em caldas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo... Azulada... Avermelhada... Cinza-escuro... E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível contar! Impossível escrever! E mesmo sobreviver... O que salvava era que tudo acontecia de maneira instantânea, de forma que não dava tempo de pensar, não dava tempo de chorar. Eu o amava! Eu ainda não sabia como o amava! Tínhamos nos casado havia tão pouco tempo... Ainda não tínhamos tido tempo de nos saciar um no outro... Andávamos na rua, ele me tomava nos braços e me girava. E me beijava, beijava. As pessoas passavam por nós e sorriam. O processo clínico de uma doença aguda do tipo radiativo dura catorze dias. No 14º dia, o doente morre. (Foto: Divulgação/HBO) VERDADE A radiação chegou mesmo na Suécia? Sim, a radição chegou à Suécia e foi o país o responsável por alertar o mundo para os perigos de Tchérnobil. Em Forsmark, a segunda maior usina nuclear do país, um empregado passou por um monitor de radiação ao voltar do banheiro e um alarme soou. Era 28 de abril de 1986. A radiação estava vindo dos sapatos do empregado e houve pânico acreditando que algum acidente tinha acontecido ali mesmo, mas uma investigação mais profunda descobriu que a fonte estava a cerca de 1.100 km de distância. "Não achamos nada", conta Claes-Göran Runermark, que era o gerente operacional na época. "Passamos por todos os sistemas de detecção de radiação repetidamente, e não tinha nada de Forsmark".

A radiação foi trazida pelo vento e depositada no solo por chuvas. "Graças à nossa detecção rápida, nós pudemos informar às autoridades suecas cedo, e elas então contaram ao mundo sobre a poluição radiotiva vindo do desastre na União Soviética", acrescenta Runermark. A maioria do material nocivo que chegou à Suécia já se deteriorou, mas alguns, como césio e plutônio, ficarão no meio ambiente por até milhares de ano, em níveis mais baixos. 

TALVEZ Os mineiros ficaram nus? A minissérie traz em vários momentos sacrifícios de homens comuns para tentar diminuir o impacto da tragédia. No terceiro episódio, somos apresentados a um grupo de mineiros que são convocados para escavar o reator em uma estratégia pra evitar que a tragédia piore. Desafiadores, eles pedem ventiladores para ajudar a suportar o calor nos restos da usina, mas o pedido é negado porque isso representaria um risco para eles mesmos. Eles então tiram as roupas e andam nus pelo local, apenas com o capacete. Eles sabiam que os trajes que estavam usando eram irrisórios para combater a radiação e não usaram nada para conseguir agir mais rápido e com menos calor. 

Adam Higginbothan, autor do livro "Midnight in Chernobyl", afirmou ao Inverse que imagens do local mostram os mineiros trabalhando vestidos, afirmando que o episódio realmente ocorreu como na série mas, por isso, "talvez não exatamente nas circunstâncias descritas". (Foto: HBO) Já Craig Mazin, criador da séries, defendeu no The Chernobyl Podcast a cena, dizendo que o episódio realmente aconteceu, embora não seja certo se eles realmente tiraram tudo. "Houve relatos variados do quanto da roupa foi retirado. Mais de um conta que eles tiraram tudo", garante. "O próprio Mikhail Gorbachev disse que os mineiros de carvão meio que o assustaram. Eles eram durões. E eles escolheram voluntariamente (construir esses túneis) em parte por conta de um senso geral de honra e de comunidade". 

Mazin contou ainda no podcast que depois se descobriu que a chance de o urânio ir parar no Mar Negro era pequena - ou seja, os mineiros arriscaram a vída construindo um túnel que não foi necessário. O urânio nunca ultrapassou o bloco de concreto que ficava entre o túnel e o solo. "É apenas um fato assustador", diz o criador da série. "Eu me colocaria no lugar de Legasov e você percebe a crueldade da situação. Você não tem escolha. Uma chance de 50/50 de que você vai envenenar o Mar Negro não é aceitável".

SIM, MAS COM DIFERENÇAS Helicóptero caiu realmente na usina? Um helicóptero realmente caiu durante a operação após o acidente nuclear. Mas para dramatizar o episódio, a minissérie fez algumas modificações. O helicóptero colidiu com um guindaste - a queda não foi motivada por uma proximação excessiva do núcleo do reator da usina. O acidente foi semanas depois da explosão, e não pouco depois, como é retratado na produção da HBO. Mezin explicou sua decisão de mudar essa cronologia. "Eu queria que as pessoas soubessem que esse era um dos riscos que esse pilotos estavam lidando. Radiação estava voando ali por cima".

O incêndio de Tchérnobil gerou quase duas vezes a radição de Hiroshima por hora  Jan Haverkamp, especialista em energia nuclear do Greenpeace, disse ao Business Insider que é difícil comparar o nível de exposição à radiação dos dois casos. Em Hiroshima, os maiores impactos foram por conta da exposição direta. Quando uma bomba explode, a dose de radiação que você recebe é determinada pela distância que você está ponto de exposição. Em Tchérnobil, "muito material radioativo foi colocado na atmosfera" e depois "se espalhou por uma área muito grande". 

VERDADE Soviéticos tentaram usar robôs No episódio quatro, vemos homens jogando blocos de grafite radioativo do teto da usina. Na vida real, eles tiveram que limpar quase 100 toneladas de restos radioativos da área. Em 1990, Yuri Semiolenko, que supervisionou essa limpeza, afirmou que inicialmente o governo tentou usar roboôs controlados remotamente. Quando as máquinas começaram a quebrar por conta da atmosfera tóxica, foi decidido usar trabalho humano. 

VERDADE Animais foram executados porque carregam muita radiação Também no quarto episódio, uma equipe soviética recebe ordem de atirar em cães vagando perto da usina. Os moradores de Prypiat receberam a ordem de evacuação da cidade cerca de 36 horas após a explosão - e com apenas 50 minutos para reunir tudo que tinham e entrar nos ônibus que os tirariam dali. Eles não puderam levar os animais de estimação e não tiveram permissão de retornar mais. Cachorros abandonados vagavam pela cidade e foi daí que surgiu a ordem de matar os animais para evitar que espalhassem a contaminação. Cerca de 300 cães de rua permanecem na zona de exclusão de Tchérnobil, segundo reportagem de 2018 do The Guardian. Eles são descendentes dos animais abandonados e, geralmente, não sobrevivem mais de 6 anos por conta dos efeitos da radiação.

EXAGERO Nova explosão deixaria quase toda Europa inabitável Logo após o desastre, o temor era que uma segunda explosão fizesse com que o cório que estava derretendo entrasse em contato com a água subterrânea. No segundo episódio, a série mostra Khomyuk dizendo que uma nova explosão teria uma força de 2 a 4 megatons, que poderia eliminar "toda a população de Kiev e uma parte de Minsk". A radiação que seria emitida depois, diz ela, iria "impactar toda a União Soviétiva, Letônia, Lituânia, Bielorússia, Polônia, Tchecoeslováquia, Hungria, România e parte da Alemanha". Para Haverkamp, nesse cenário há muitas hipóteses improváveis aumentadas para efeito dramático. "Eles não estão salvando o mundo", afirma, dizendo que a estimativa da força de uma nova exposão é "um exagero".