Henry Borel morreu de não ser ouvido

Pra ele, não adiantou a militância de tantos e tantas que repetem, à exaustão, "escute a criança". Mas quase ninguém dá ousadia

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 10 de abril de 2021 às 11:15

- Atualizado há um ano

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O menino, aos quase cinco anos, falou, vomitou, pediu pra ficar mais um dia com o pai. A psicóloga disse que era normal que ele fizesse "birra" agora, na nova vida de pais separados e marido novo da mamãe. À psicóloga, deram crédito. Ao menino, que pedia socorro, não. Pela troca de mensagens entre a mãe e a babá, pelos relatos de ex-companheiras do tal doutorzinho, a polícia concluiu que o garoto sofria "rotina de violência". 

Porém, surpreendentemente, ninguém foi capaz de identificar um hematoma, uma marca, um edema, um machucado, sequer. Praticamente impossível que nada ficasse, a não ser que fosse usada uma técnica avançada de espancamento. Mas não é o que parece já que, nas fotos que a babá mandou para a mãe, três semanas antes do assassinato, tinha joelho roxo e o aviso de que o garoto mancava. "Rotina de violência" disse a polícia, mas ninguém desconfiou do inferno que Henry vivia. 

(Se a "técnica" do autor do crime fosse tão boa assim, como defendem algumas teorias, não teria sido entregue um corpo com sinais tão evidentes de espancamento.)

Agora, não há mais o que fazer pelo menino. A polícia tá cumprindo o papel dela, os "suspeitos" (só uso essa palavra por obrigação legal, por mim, já usaria assassinos mesmo) estão em prisão temporária. A justiça deve condenar os dois. Assim espero, mas Henry está morto. Pra ele, não adiantou a militância de tantos e tantas que repetem, à exaustão, "escute a criança". Mas quase ninguém dá ousadia.

Fato - mais uma vez comprovado - é que, enquanto tudo que vem de criança for "birra", enquanto adultos garantirem que sabem delas - sem ouví-las -, enquanto acharem que basta um diploma em psicologia para que se ganhe a confiança dos pequenos, a infância permanece em perigo. Sem um mínimo de respeito, todos os quartinhos bem decorados, todas as festas de aniversário, todos os presentes caros serão compensações, expressões de culpa, vazamentos de energia, pura mentira.

O problema nunca foi o "rodízio de padrastos" nem qualquer configuração de família. Como sabemos, o manto da moralidade cobre as questões, justamente quando não interessa colocar os pingos nos is. No caso de Henry, como em tantos outros, está evidente, para quem quiser ver, que crianças pedem socorro, avisam, dão sinais. Mas, em geral, a morte (ou outras concretizações da violência) chega antes da escuta dos que dizem amar os/as filhos/as. Esse amor no qual, sinceramente, várias vezes, eu não acredito. São pesos, e não amores, muitos/as meninos e meninas.

(Não sei se podemos considerar esta disfuncionalidade como apenas de uma minoria.)

O último lugar na hierarquia social é das crianças. Insisto nisso, há anos, e percebo o estranhamento de muitos adultos quando se reivindica a humanidade infantil. Não tem "criança é assim mesmo", na minha cabeça. Se não há "adulto é desse jeito", não entendo o sentido de uniformizar todos os comportamentos, achar que é todo mundo igual, antes dos 18 anos. 

São indivíduos. Falar deles sempre no coletivo, não escutar as demandas e chamar qualquer manifestação de "birra" é apenas o jeito que adultos encontraram pra terem menos trabalho e conseguirem passar batidos pelo momento da vida para os quais eles não têm saco, nem tempo, nem vontade de entender: infância e adolescência.

(Mesmo muitos/as profissionais, veja bem.)

(Inclusive psicólogas/os, professoras/es e "treinadoras de bebês".)

(Isso mata. Simbolicamente, literalmente, de muitas maneiras.)

Por falta de saco, adestram sonos, batem, ameaçam, isolam em quartos decoradíssimos. Querem distância dos/as filhos/as. Aquela distância que pareceu "natural" o pai e a mãe de Henry manterem imensa, enquanto discutiam, entre eles, a resistência do garoto em encontrar mãe e o padrasto. O garoto chorava, vomitava, não queria. Hoje vemos, nas mensagens publicadas pela imprensa, que a mãe conhecia as torturas pelas quais o menino passava. Por isso está presa. 

Só que a conversa incluiu o pai e, mesmo assim, era apenas em torno do impacto que o comportamento da criança causava no emocional de ambos os adultos. Porque essa é a atitude mais comum: pensar no quanto criança "complica". O que Henry sentia, por que se manifestava daquela maneira, nada disso foi discutido pelo ex-casal. A mãe não precisou nem fingir que não sabia os motivos da criança porque isso sequer foi questionado. Pelo menos, não nas mensagens divulgadas até aqui.

(Se foi falado em outro momento, que fosse repetido. Era SÓ ISSO que importava ali: entender o pânico, o desespero, a agonia do menino.)

(Assassino é quem matou, mas não há um papel de cuidado a ser desempenhado pelas pessoas às quais crianças pedem socorro? Principalmente se é um pai, este que divide a responsabilidade legal pela integridade dos filhos?)

(A mãe estava claramente incomodada por ter que receber o filho que não queria voltar pra casa e o menino pediu mais um dia com o pai. Não tinha mesmo como conduzir aquilo de outra maneira que não fosse entregar o garoto, naquele estado emocional?)

(Tem até como instalar microfones em mochilas e tênis de crianças, mas eu sei: você pode achar fantasioso que alguém vá tão longe pela segurança de um filho.)

(Problema é justamente esse, as pessoas deviam ir.)

Enfim, ficou provado que não era birra. Nesses casos, quase nunca é "birra". "Birra" nem é comportamento obrigatório na infância, procure saber. Quem vive fazendo "birra" é adulto. Somos nós que implicamos à toa, somos nós que, muitas vezes, agimos motivados/as por capricho, paixão e má vontade. O que criança tem é imaturidade neurológica, em algumas fases, e, sempre, a transparência mais absoluta. A real é que, criança fala (chora, desenha, vomita) a verdade que vive. Basta que a gente queira entender direitinho.

A responsabilidade por esse e por todos os crimes parecidos é coletiva. É da nossa estrutura fazer muita presepada quando crianças nascem, para, em seguida, esquecê-las nos becos escuros psíquicos, sujeitas aos sintomas e perversões de qualquer um, de dentro ou fora da família. Filho é pra ser honrado, foi isso que aprendi. É parceria. É pra ser escutado, acreditado, é onde devíamos apostar as nossas melhores fichas. Sim, tragédias podem ser evitadas, com isso. Voltando ao caso terrível, observe que, seja qual for o desfecho das investigações, seja qual for a pena estabelecida, o único fato que já está esclarecido é: Henry Borel morreu de não ser ouvido. Porque ele disse tudinho.

(Ainda sobre o caso, também sinto que, de todos os citados, não há um inocente vivo.)