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Gil Santos
Publicado em 24 de outubro de 2022 às 10:14
Com passos lentos, contando com a ajuda de um andador e amparado por dois irmãos, o aposentado Luiz Lopes, 95 anos, caminhou até a frente do altar da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, e sentou na primeira fileira. Todo o esforço foi para assistir a missa em homenagem aos integrantes da Irmandade do Rosário dos Homens e Mulheres Pretos que morreram. A igreja ficou lotada, houve procissão e uma série de atos simbólicos que atraíram a atenção de baianos e turistas.>
O Brasil ainda era colônia quando a Irmandade foi fundada em Salvador, em 1685, como um espaço de convivência social e religioso, 13 anos após a Câmara Municipal tentar regular as práticas culturais africanas com a proibição do uso do atabaque. Centenas de integrantes passaram pela organização deste então, e nesta segunda-feira (24) uma missa foi celebrada para lembrar os nomes de alguns deles. Esse foi o último ato da programação litúrgica iniciada em 7 de outubro em homenagem a Nossa Senhora do Rosário.>
“Faz tanto tempo que faço parte da Irmandade que já perdi as contas, mas são muitos anos. Fazia um ano que não participava das celebrações, porque tenho dificuldade para chegar, então, estou muito feliz de poder estar aqui”, contou Luiz enquanto era abordado a todo instante por membros mais jovens que queriam cumprimentá-lo. (Foto: Gil Santos/CORREIO) Um dos momentos mais emocionantes foi quando os integrantes formaram um corredor na nave do templo e acenderam as velas pelos que partiram, enquanto os nomes eram lidos em voz alta. O público também pôde colocar no cesto nomes de entes queridos. O capelão da Ordem Terceira do Rosário, cônego Lázaro Muniz, contou que a organização tem características específicas.“É uma Irmandade de negros para cuidar de negros e que traz sempre na sua liturgia, no seu modo de ser cristão católico, as marcas da negritude, da africanidade nos gestos, na fala, nos cânticos e nos instrumentos, como um sinal de resistência e um lugar onde os negros possam se encontrar e celebrar a fé”, afirmou.Para integrar a Ordem, primeiro, é preciso ser indicado por um dos 227 membros, ser católico e ter identificação com as causas negras. Uma mesa administrativa avalia caso a caso. Depois vem a preparação, dividida em três etapas: aspirantado, postulado e noviciado. No fim de semana, nove católicos iniciaram o noviciado, a última etapa.>
“É Irmandade dos Homens Pretos, mas hoje fazemos questão de chamar também das Mulheres Pretas. Surgiu só com homens por conta da ideia de que falar de homem era falar de todo mundo, mas temos que lembrar que os homens não representam todos. Sempre se acolheu mulheres, mas elas não podiam atuar como priora, apesar de fazerem tudo, os homens é que mandavam, como é comum no patriarcado e na colonização”, explicou Muniz.>
A atual vice-priora, Cosma Miranda, 72, contou que as vestes, um dos elementos mais conhecidos, são usadas em ocasiões especiais. As peças incluem o hábito dominicano branco, a capa preta que é chamada de grau, um terço, o cinto e o tocheiro onde fica a chama ou vela. Cada uma tem um significado. Cosma faz parte da Ordem há 27 anos.>
“Me sinto uma pessoa completa, religiosamente, como cidadã e como negra. Vejo acolhimento e a importância de integrar todos os irmãos que fortalecem esse legado de 337 anos. A primeira pessoa convidada da minha família foi minha irmã gêmea, ela acabou não ficando. Eu vim para fazer uma atividade e estou aqui até hoje”, celebrou.>
Antes da pandemia, a Ordem oferecia oficinas e cursos, no entanto as atividades estão suspensas por conta da reforma no centro comunitário. O padre Clóvis Cabral presidiu a missa e disse que a data é um momento para agradecer e rezar pelos entes queridos.>
Representantes da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, sentaram nos primeiros bancos da igreja, e a missa teve também membros das irmandades dos homens pretos de São Paulo (SP), além de Recife e Olinda (PE). No final, houve uma procissão pelo Largo do Pelourinho e os papéis com nomes de falecidos foram levados para o cemitério nos fundos do templo.>