Igreja, terreiro, cemitério e faculdades: bairro da Federação é cheio de histórias

Segundo o IBGE, dos 38.151 moradores da Federação, 79,58% são negros

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  • Tailane Muniz

Publicado em 19 de novembro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Mauro Akin Nassor/CORREIO

O banho de pipoca garante paz e prosperidade, comenta a ialorixá Tânia Pereira, 63, ao lembrar como iniciou, há quatro anos, o que chama de missão. Sempre no mesmo lugar: a igreja de São Lázaro e São Roque, no bairro da Federação, em Salvador. “Pedi a cura da anemia de minha neta”. Prometeu uma segunda, mas não parou mais. Diz que dá e recebe boas energias. É assim toda segunda-feira, dia dos padroeiros. 

O ritual acontece ali, na Rua Aristides Novis, a conhecida Estrada de São Lázaro, onde o CORREIO faz morada há 11 anos. Na vizinhança do jornal e em frente ao templo católico, Tânia banha adultos e crianças, ricos e pobres, “sem distinção”, afirma. Moradora da Boca do Rio, não ousa dimensionar, contudo, o vínculo que criou com a Federação – que além de todas as torres de TV da cidade, reúne ao menos cinco terreiros de candomblé.  Tânia banha adultos e crianças com sua pipoca (Foto: Marina Silva/CORREIO) O bairro, cujos extremos faz fronteira com Graça e Rio Vermelho, até o final do século 19, se limitava às fazendas de fluxo que se estendia apenas ao Cemitério Campo Santo. Um tempo em que a população, predominantemente escravizada, se aglomerou e fundou dezenas de casas de santo, incluindo alguns dos maiores de Salvador, a exemplo do Gantois e da Casa Branca. 

Mulher preta, como se diz, Tânia pode até não morar, mas é o retrato de metade da Federação. No bairro, segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de um total 38.151 habitantes, 79,58% são negros. Dos 12.568 domicílios, 49% têm mulheres como chefes. “Moraria, com certeza. Mas como vou continuar aqui pelo tempo de vida que eu tiver, está tudo certo”, diz Tânia, sem o entendimento de que os irmãos de santo ajudaram a construir o local.

Ao lado de Tânia, a mãe de santo Vó Matildes interrompe o silêncio para anunciar a idade: “Tenho 94 anos”. Do tempo de vida, ao menos por 30 anos frequenta a Igreja de São Lázaro. “Não ando aqui, e também dou banho de pipoca”, afirma, em tom de imposição. E demonstra conhecimento sobre os ancestrais quando diz que “a estrada fica cheia de gente no dia deles, sempre foi assim, desde a época das minhas bisavós”. E se limita a dizer que a semana de qualquer baiano “só começa bem se tiver pipoca no meio”. Vó Matilde (Foto: Marina Silva/CORREIO) ‘Onde a elite não pisava’ Na contramão dos prédios de luxo que abriga nos dias de hoje – alguns ao lado do CORREIO –, a Federação já foi um lugar onde a elite sequer pisava, explica o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-ameríndia (AFA), Leonel Monteiro. Aliada aos traços da natureza, a altura é um ponto que o pesquisador destaca como o que propiciou a presença e permanência de uma maioria negra.

“Havia muita água na região, o Dique do Tororó é um exemplo. São muitas modificações, mas havia também muita mata. Era um lugar do mapa em que a elite não ocupava porque eram áreas periféricas”, comenta Leonel.

No topo dos 115 metros de altitude das principais ruas da Federação, foi construída a primeira estrada do bairro. Àquela época, partindo de onde hoje se localiza a Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Em tempos de proclamação da República, a atual Rua Caetano Moura foi batizada de Estrada da Federação. Daí veio o nome da localidade. “Os escravos aproveitavam a altura e se refugiavam. Consequentemente, os terreiros foram empurrados. São esses que, hoje, conhecemos como os mais tradicionais”, diz, ao citar o Engenho Velho – espécie de sub-bairro da Federação - como “um grande quilombo”.  Lá, na Rua Pilão sem Tampa, segundo Leonel, é possível encontrar dezenas de casas de candomblé de pequeno porte.

“A natureza é um ponto importante. Havia uma área propícia para oferendas, como as águas e matas. Por isso, sem dúvida alguma, esse ponto da história tem ligação direta com o fato de ser um local que talvez concentre o maior número de terreiros de Salvador”, reforça.

O Gantois Na Cardeal da Silva – que os moradores defendem como um prolongamento da Caetano Moura, que por sua vez é a sequência da Ladeira do Campo Santo e, por tabela, da Rua Padre Feijó [que se inicia no Canela] – está a entrada do Gantois. A pouco metros do terreiro centenário, mora a produtora cultural Didica Vasconcelos, 41. 

Ela, que se estabeleceu no local há dez anos, diz que morar ali é diferente de qualquer outro lugar dos quatro cantos da Federação. Lá não tem final de linha, nem Engenho Velho ou mesmo a privilegiada vista Alto das Pombas para o mar de Ondina. E por que o Alto do Gantois é especial?  “Aqui eu não vejo meninos armados, não vejo roubo ou qualquer coisa de violência. É como se um portal (de paz) se abrisse”, assegura Didica.

Na mesma região, a aposentada Alaíde dos Santos, 84, vive há cinco décadas. Acompanhou a ascensão do terreiro que foi dirigido por Mãe Menininha e diz que só sai dali no final de vida. “Eu digo aos meus filhos todos os dias: 'Nós somos privilegiados de morar aqui'”. E cita a ausência de violência como o principal ponto positivo.

O CORREIO não conseguiu contato com representantes do terreiro de história secular. Não se sabe se há interferência dos orixás na tranquilidade que pregam os moradores, mas o historiador Cid Teixeira afirma no livro Caminho das Águas, que demarca os bairros de Salvador, que Gantois era um francês e “um dos principais importadores de escravos após supressão oficial do tráfico” de pessoas. 

Bendito Campo Santo Manuela Santos Silva, 46, diz que foi do nada a decisão de começar a vender flores no tradicional Cemitério do Campo Santo. Nascida e criada no Alto das Pombas, ela festeja a possibilidade de poder trabalhar perto de casa. Sequer consegue eleger o dia em que vende mais, mas assegura: “Sempre dá bom”.

Ela atribui o movimento não só aos sepultamentos diários, mas também às visitas de turistas e curiosos em busca das referências históricas e culturais do equipamento que, após implantação da Santa Casa, marcou o fim dos tempos em que os enterros eram realizados no interior das igrejas, lembra Manuela, ao se referir à revolta das Cemiteradas, em 1836. 

“Amo morar aqui. Para mim não tem bairro igual à Federação. A gente vai andando para o Centro, para a praia, e, no meu caso, até para o trabalho. Se ele não existisse, eu ia ter que me virar com outra coisa, porque quem mora aqui é ‘correria’”, diz, aos risos.

Oxente Encantado A Federação descrita por moradores e visitantes como um lugar tranquilo e bom de morar chamou a atenção da dentista Laiz Lima, 45, sob a perspectiva de quem não tinha qualquer relação com o bairro, até participar de uma roda de capoeira no local, há cinco anos.

Percebeu, à época, que alguns meninos e meninas não tinham outras atividades. “Ficavam pelos cantos, sem ter o que fazer, e aquilo me motivou a criar a Oxente Encantado”, diz, sobre o grupo que reúne ao menos 30 pessoas – amigos e amigos de amigos – com o propósito de “resgatar a infância”. Projeto Oxente Encantado (Foto: Marina Silva/CORREIO) Não se trata de uma ONG, salienta a dentista, mas de uma casa alugada Rua do Mata Maroto, no Parque São Braz, que dispõe de dezenas de livros doados, feita para qualquer criança entrar, ler e brincar.

“Eu chamo de corrente do bem. Não temos qualquer fim lucrativo. Nossa missão é fazer com que eles aprendam a ler e a entender a vida de forma lúdica”, diz sobre os 80 meninos e meninas assistidos na casa toda decorada e colorida pelos próprios pequenos.

‘Meu Engenho Velho’ Ali perto, a dona de casa Edileuza Lima Alves, 42, sobe e desce rua por rua, todos os dias. Anda pelo bairro todo, mas assegura que o seu lugar no mundo é o Engenho Velho. Para ela, que exalta a presença dos campi da Universidade Católica de Salvador (Ucsal), Universidade de Salvador (Unifacs), além da própria Ufba, não há lugar igual.  Engenho Velho (Foto: Marina Silva/CORREIO) “A presença dos estudantes dá um ar interessante, eu acho, isso aqui maravilhoso”. Conta que nasceu e foi criada na região, mas que passou a conhecer os becos e vielas depois que viu a possibilidade de “ganhar a vida” por meio da reciclagem. “Comecei a trabalhar na rua com 13 anos. Mas tenho família. Junto com minha mãe, saio todos os dias em busca dos meus materiais”, resume, ao lado do carrinho de mão que utiliza para recolher a ferramenta de trabalho.  Edileuza também destaca a segurança como ponto alto da área. “Ninguém mexe com ninguém”, afirma. 

Na mesma localidade, a estudante Carolina Dias, 29, é só elogios ao bairro em que frequenta as aulas de publicidade na Ucsal. “Eu gosto muito daqui. Por ser central, fica fácil chegar e sair sem precisar esperar tanto por um ônibus, isso facilita para qualquer universitário”, defende. Carolina mora em Armação.

À reportagem, o aposentado Dernerval Sousa, 71, ensaia contar nos dedos os motivos pelos quais permanece no mesmo endereço há 30 anos. A casa própria é um deles, afirma. Mas não fosse por amor, garante, já tinha “picado a mula”. Ali criou os três filhos e cinco netos. “Tem escola, mercado, igreja e terreiro para os que são 'do axé'”, segue a enumerar. Seu Derneval não troca a Federação por nada (Foto: Marina Silva/CORREIO) A tranquilidade e “parceria” entre os vizinhos de anos, no Engenho Velho, salienta, também é uma boa motivação para permanecer no local. “É praia, é faculdade, é escola para as crianças, é tudo”, justifica. O aposentado brinca que na Federação tem jeito “até para o que não tem jeito”. Isso porque em caso de morte, diz ele, todo mundo já sabe o que fazer: “Oxe, aí é só bater lá no Campo Santo”.

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Marcos da Federação

Cemitério do Campo Santo Foi fundado em 1836 para que os sepultamentos em Salvador deixassem de ser feitos dentro das Igrejas e passassem a um lugar específico para isso. No entanto, resistente à ideia, a população destruiu o cemitério no episódio conhecido como Cemiterada, naquele mesmo ano de 1836. O Campo Santo, que só passou a receber sepultamentos em 1844, pertence à Santa Casa de Misericórdia e tem hoje mais de 30 mil sepulturas, além de abrigar um circuito cultural de arte cemiterial. Cemitério Campo Santo (Foto: Marina Silva/CORREIO) Cemitério dos Alemães Fica em frente ao Cemitério do Campo Santo e foi fundado em 1851 para atender a uma necessidade de imigrantes alemães de manter suas práticas culturais até mesmo na hora da morte. Muitos alemães eram luteranos e havia uma resistência em enterrá-los ao lado de católicos.  Cemitério dos alemães (Foto: Divulgação) Igreja de São Lázaro A igreja é uma construção do século XVIII e está intimamente ligado à história médica da Bahia. Segundo informações do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), começou a ser construído ao lado da capela, em 1755, um Lazareto, espaço para receber os doentes que chegavam da Costa da África. Hoje, o espaço abriga a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). Igreja de São Lázaro (Foto: Marina Silva/CORREIO) Igreja Luterana   A Igreja Evangélica de Confissão Luterana teve sua primeira sede em Salvador inaugurada em 1957, embora a comunidade luterana tenha começado a se estruturar na capital baiana em 1925. A Igreja funciona até hoje na Rua Aristides Novis, na Federação, promovendo, além de atividades religiosas, outras culturais.

Terreiro do Gantois É um dos principais terreiros de Salvador e foi fundado em 1849, pela africana Maria Júlia da Conceição Nazareth. Segundo informações do terreiro, o nome Gantois se deve ao antigo proprietário do terreno, o traficante de escravos belga Édouard Gantois, que arrendou as terras a Maria Júlia da Conceição Nazareth. O espaço numa área alta, cercada por um bosque de difícil acesso, protegia o local da perseguição policial existente à época. É tombado pelo Iphan e ficou famosos quando foi dirigido pela mãe-de-santo Mãe Menininha. Terreiro do Gantois (Foto: Divulgação) Terreiro Ilê Axé Oxumaré Está entre os mais antigos terreiros de Salvador e foi fundado em 1836 pelo Bàbá Tàlábí, oriundo da antiga cidade Kpeyin Vedji, a noroeste de Abomey, na África. Em 2002m foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares como território cultural afro-brasileiro. É tombado pelo Iphan. Terreiro Ilê Axé Oxumaré (Foto: Divulgação) Ufba A Universidade Federal da Bahia tem boa parte de seus campi na Federação. O bairro abriga as escolas de Arquitetura e Urbanismo, a Escola Politécnica, onde funciona os cursos da área de Engenharia, além da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Escadaria da Politécnica é famosa entre estudantes (Foto: Arquivo CORREIO) Ucsal   A Universidade Católica do Salvador tem um de seus campi na Federação. Antes de funcionar lá, a Ucsal mantinha suas instalações no Convento da Lapa, no Centro de Salvador.

Unifacs A Universidade Salvador também mantém um campus na Avenida Cardeal da Silva, na Federação. Unifacs (Foto: Reprodução) ***

CORREIO leva serviços para o Abaeté Nesse sábado (23/11), como parte das ações de comemoração dos 40 anos do CORREIO, serão oferecidos serviços de saúde, educação, cidadania e lazer para cerca de 500 pessoas da localidade do Alto do Abaeté. O projeto Chegue Junto Comunidade acontecerá das 8h às 16h, na Creche e Pré-Escola Primeiro Passo Itapuã.

Serão realizados atendimentos gratuitos de Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida até o meio-dia; testes rápidos de HIV, Sífilis e Hepatite; serviços de saúde bucal; vacinação antirrábica de animais; aferição de pressão arterial e glicemia; massagem relaxante e aulas de capoeira e FitDance. 

Também ocorrerá orientação jurídica para a população nas áreas Trabalhista, do Consumidor, Família e Sucessões.   A distribuição de senhas iniciará às 8h e os atendimentos começamo a partir das 9h. O agito musical ficará por conta do projeto Malêzinho, ala infantil do Bloco Afro Malê Debalê, que funciona na região.

Viabilizado em parceria com a sub-prefeitura de Itapuã, o evento deixará um legado de cidadania para o bairro, conforme afirma o sub-prefeito Marco Aurélio Elpídio.

“Nossa maior intenção com esse projeto é de integrar. O jornalismo cidadão vem da troca de experiências, seja pelos serviços que estamos facilitando, seja através das vivências dessas pessoas, que também agregam ao nosso conhecimento. Sendo o Jornal que é a cara da Bahia, o CORREIO se nutre pelo contato com a cidade”, afirma Luciana Gomes, gerente comercial do Jornal CORREIO.

O Chegue Junto Comunidade integra o projeto CORREIO 40 anos, que tem oferecimento Bradesco, patrocínio Hapvida e Sotero Ambiental, apoio institucional Prefeitura de Salvador, apoio Vinci AirPorts, Sesi, Salvador Shopping, Unijorge, Claro, Sebrae, Itaipava Arena Fonte Nova, Santa Casa da Bahia e Coelba.