Invasão a terreiro durante festa é a primeira na Bahia, dizem pesquisadores

Assaltantes entraram em terreiro durante culto; pessoas incorporadas foram abordadas

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  • Thais Borges

Publicado em 13 de janeiro de 2019 às 17:25

- Atualizado há um ano

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Ataques a tiros, com pedras e com sal; invasões de policiais militares e de bandidos; ofensas na internet. Os casos de intolerância religiosa na Bahia, que cresceram 124% entre 2017 e 2018, têm se manifestado de diferentes formas.

Mesmo assim, a brutalidade na invasão de seis homens armados ao terreiro Ilê Axé Ojisé Olodumare, a Casa do Mensageiro, em Barra do Pojuca, na cidade de Camaçari, Região Metropolitana de Salvador, foi episódio que não se tinha notícia na Bahia, nos últimos anos – vale lembrar que o candomblé era ilegal até a década de 1940 e que Jorge Amado foi o autor da Lei de Liberdade de Culto, em 1946.

Na noite desse sábado (12), seis homens (ao menos dois deles armados) invadiram o terreiro, durante um culto sagrado a Oxalá. O babalorixá da casa e um fotógrafo foram agredidos com uma coronhada na cabeça, cada. Os bandidos ainda chegaram a tentar roubar celulares de pessoas que estavam incorporadas.

De acordo com o professor André Nascimento dos Santos, da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e integrante da Comissão de Terreiros Tombados, há notícias de um caso semelhante em Olinda (PE), no ano passado. Acontecia uma celebração em um terreiro da cidade quando homens armados entraram no local para assaltar as pessoas. 

Quem estava presente foi obrigado a deitar no chão e houve um tiroteio, ao final.“Essas narrativas de violência externa contra o povo de santo, tanto em termos de violência urbana, como de intolerância religiosa, têm sido cada vez mais constantes, habituais”, diz. Ele pondera que, por muito tempo, os terreiros foram protegidos nas comunidades, devido ao papel social de suas lideranças. A lógica das casas de candomblé, inclusive, é de manter as portas abertas para a comunidade, sem nenhuma restrição a quem quiser entrar. 

“Mas quando você começa a ver coisas como essa que aconteceu em Barra do Pojuca, a gente começa a se perguntar até que ponto isso é só violência urbana. Dois anos atrás, você tinha uma narrativa das Igrejas Universais dos Gladiadores da Fé, que também é outro fragmento religioso que se forma nas periferias e começa a rivalizar espaço com os terreiros”.

Ele pondera, contudo, que não dá para apontar responsáveis no ataque da Casa do Mensageiro, mas que isso ajuda a compreender o componente da intolerância religiosa. “Os terreiros, embora sejam fortes, dentro de suas comunidades, ainda são vulneráveis na esfera pública”, completa.

Ensino nas escolas Outra situação parecida, como lembrou o antropólogo Fábio Lima, que é ogã do Ilê Axé Opó Afonjá e doutor em Estudos Étnicos e Africanos, aconteceu no Rio de Janeiro (RJ), durante o Axexê, ritual fúnebre do candomblé, do babalorixá Waldomiro de Xangô. Conhecido como Baiano, o pai de santo morreu em 2007, e passou pelos rituais no Rio. 

Na ocasião, bandidos entraram e agiram de forma truculenta. Segundo Lima, esse tipo de ação ainda é novo na Bahia. Por aqui, o que se tornou comum desde o início dos anos 2000 foram notícias de pessoas – especialmente, evangélicas – que jogam sal em templos e monumentos sagrados, além de agredirem verbalmente mães de santo.

Antes disso, só há registros de ações truculentas da polícia, até a década de 1930. “Você tem aí, nitidamente, intolerância religiosa. Me solidarizo ao pai de santo, uma pessoa esclarecida, mestre em estudos africanos, que batalha para que sua casa seja uma memória da ancestralidade africana. E ele tem o seu trabalho teórico e prático afetado. O estado tem que dar retorno. Estamos cansados de ter nossas casas invadidas”, afirmou Lima, referindo-se ao babalorixá Rychelmy Imbiriba. Para ele, o ódio contra as religiões de matriz africana tem se tornado cada vez mais institucional. As religiões, na avaliação dele, têm sido demonizadas de forma crescente. Para o antropólogo, a lei federal 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, não têm sido bem aplicada. 

“A escola tem que ensinar que essas religiões são memórias corporificadas. Quando você educa as pessoas para conviver com a diversidade, elas crescem respeitando. É preciso que o estado tome um posicionamento”, defende. 

Em 2008, o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Ufba publicou o Mapeamento dos Terreiros de Salvador, em parceria com a Secretaria Municipal da Reparação (Semur). De acordo com o professor Jocélio Teles, que coordenou o estudo, o mapeamento identificou que 8,6% do conjunto de terreiros na capital (na época, 1.164) vivia alguma situação de conflito.

Esses conflitos, geralmente, eram relacionados a igrejas evangélicas – em especial, as neopentencostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus, ou as tradicionais, como Testemunhas de Jeová e Assembleia de Deus. Ainda segundo o professor, esse tipo de conflito tem sido crescente, a partir da década de 1990, e tem se tornado comum em todo o Brasil – mesmo com a presença de instituições como o Ministério Público (MP-BA) e entidades do movimento negro.

Iraildes Andrade, coordenadora geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e ekedi da Casa de Oxumarê, afirmou que está “sensibilizada e preocupada com essa questão”. “Infelizmente, hoje vamos ter que ter muito cuidado. Essa é a conversa que venho tendo aqui em casa (de Oxumarê). Temos que ter cuidado com esses ataques que estamos sofrendo. Eu acho que a gente  precisa agora se fortalecer muito e ter muito cuidado, porque viveremos tempos muito difíceis”, disse.

“As pessoas estão achando que podem fazer o que querem. Que podem entrar e apedrejar os terreiros. A gente vai precisar de ter muita conversa, entendimento e paciência e espero que a gente possa contar com os poderes públicos para nos ajudar, porque viveremos tempos difíceis. Nós nos sensibilizamos e estamos ao lado do Babá Rychelmy. Agora, vamos ter que nos preocupar com a segurança das casas, porque elas estão sendo invadidas. Isso é muito sério”, concluiu.

Como denunciar A Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) tem uma rede de atendimento contra a intolerância religiosa nos municípios. O contato deve ser feito através do (71) 3117-7448. O órgão é responsável por orientar a vítima a procurar a unidade mais próxima.

Outra forma de denunciar ataques é através do aplicativo Mapa do Racismo, lançado em novembro pelo MP-BA. Na prática, depois que o cidadão baixar o app e fizer a denúncia, uma equipe gestora vai encaminhar a demanda para a comarca devida e, em seguida, o MP-BA entrará em contato com a vítima.  Confira alguns dos casos recentes de intolerância religiosa na Bahia: 1º de janeiro de 2019 – Cajazeiras, Salvador  Três dias após ter sido atingida com mais de 100 quilos de sal, a Pedra de Xangô voltou a ser atacada. Novamente, pessoas não identificadas despejaram sal no monumento sagrado que é tombado como patrimônio histórico pela prefeitura de Salvador. A quantidade de sal, que não foi divulgada, foi menor do que a do atentado anterior. "Infelizmente, esta não é a primeira vez que esse tipo de crime é cometido contra a Pedra de Xangô. Em 8 de novembro de 2014, eles utilizaram a mesma prática. Na época, a Pedra ficou imersa em cerca de 200 kg de sal de cozinha e vários sacos plásticos em sua volta, da mesma forma que agora", contou, na ocasião, a advogada Maria Alice Pereira, responsável pela petição entregue ao Ministério Público da Bahia e uma das idealizadoras do portal oficial do monumento religioso, ao CORREIO. 30 de dezembro de 2018 – Bahia Mãe Stella de Oxóssi, que morrera três dias antes, aos 93 anos de idade, foi alvo de intolerância religiosa nas redes sociais. Em postagens no Instagram, internautas ofenderam a Ialorixá, considerada uma das mais importantes líderes religiosas do país. 

Entre os comentários, vindos de perfis que se diziam evangélicos, estavam frases como "um macumbeiro a menos" e "satanás é descarado mesmo”.  Na mesma ocasião, Mãe Stella também foi alvo de lesbofobia. Ela era casada com a psicóloga Graziela Domini, 55. 

29 de dezembro de 2018 - Cajazeiras, Salvador  A Pedra de Xangô, monumento sagrado e tombado pela prefeitura da capital, foi atacada e vítima de vandalismo. Foram jogados mais de 100 quilos de sal no local, que precisou ser varrido pela Limpurb.

Outubro de 2018 - Avenida Vasco da Gama, Salvador As paredes do muro da Casa de Oxumarê foram pichadas com as palavras “Jesus é o caminho”. Na ocasião, o babalorixá do terreiro, Babá Pecê, ressaltou ao CORREIO que os ataques e a tentativa de interromper ou impedir que o terreiro funcione são constantes.

Ao longo de 2018, até a presença do terreiro nas redes sociais foi atacada.  A página da Casa de Oxumarê no Facebook sofreu ataques em massa, chegando a ser retirada do ar .“Eles estão denunciando em massa a nossa página no Facebook. A página chegou a ser desativada, mas nós entramos em contato com o Facebook e conseguimos colocá-la no ar novamente”, explicou o babalorixá.11 de outubro de 2018 – Fazenda Grande do Retiro, Salvador  Alexandre Santos Silva foi baleado por um vizinho, na manhã do dia 11 de outubro, depois de tentar colocar uma oferenda religiosa na rua. O crime aconteceu por volta das 5h20, na Rua Fazenda Grande do Retiro, no bairro de Fazenda Grande do Retiro.

De acordo com informações do boletim de ocorrência do posto da Polícia Civil do Hospital Geral do Estado (HGE), Alexandre foi até a rua onde mora para colocar uma oferenda, quando um vizinho, que não teve o nome divulgado, se irritou com a vítima.

26 de agosto de 2018 - Juazeiro  O terreiro Ilê Abasy de Oiá Gnan, que fica em Juazeiro, no Vale do São Francisco, foi apedrejado durante todo o dia. Assustada, a ialorixá teve que sair de casa para evitar uma crise de hipertensão.

As pedras eram jogadas pelo telhado. O terreiro já vinha sendo alvo de agressões desde 2015.

27 de janeiro de 2018 – Fazenda Coutos, Salvador  Por volta das 15h, oito membros do Terreiro Ilê Axé Torrun Gunan, em Fazenda Coutos, estavam no local, quando a casa foi invadida por policiais militares das Rondas Especiais (Rondesp) e do Pelotão Especial (Peto).

Eles afirmaram estar à procura de supostos traficantes que teriam se escondido no local. Os PMs, de acordo com membros da casa, atiraram quatro vezes contra a casa e entraram em um quarto considerado sagrado para os adeptos da religião. Durante a ação, um ogã do terreiro chegou a ser detido sob a acusação de desacato policial.