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Paulo Leandro
Publicado em 10 de agosto de 2022 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Lourinho, Alemão e Jones formam o trio de encantados necessários para a narrativa fundamental de uma mitologia do Bahia, se pudesse ser cantada em poemas atribuídos a Homero ou via origem dos deuses de Hesíodo.>
O sumiço de Jones sangrou, não apenas pela finitude do nonagenário, mas principalmente pela ausência dos aedos, pois sem contarmos suas proezas, fica a sensação de morte duplicada, a física e a metafísica, a ontológica e a poética.>
Vamos evitar a zanga de Zeus, uma vez sabermos o quanto seus raios podem fulminar quem o irrita por ignorar Mnemósine (a Memória), uma de suas milhares de namoradas, com quem gerou nove musas, uma por noite de trepada divinal.>
Jones foi líder de torcida, levou sua negritude para a velha Fonte, a voz do povão a ecoar pelo cimento incompleto do estádio, porque Salvador funciona assim, damos valor à pândega e à alegria, das quais o Bahia é tudo de bom.>
Jones foi cozinheiro, ou “conzinheiro”, separava os bifinhos no capricho, para garantir caloria aos tricolores: um intuitivo nutricionista inspirado pela Musa da arte culinária e a Graça das delícias do paladar.>
Jones foi massagista, salvava jogadores dos excessos dos preparadores físicos, quando saber cuidar da criança era mais importante: relaxar a musculatura decidia títulos! Grosso não tinha vez.>
“Quem jogou no velho gramado da Fonte sabe o quanto era pesado, esburacado. Para piorar, as banheiras do Bahia estavam sempre quebradas, não tinha como o atleta relaxar, exceto com massagens”, lembra Osni, jogador, treinador, artilheiro e campeão em 1984 (inédito no mundo).>
Nem sempre se entendiam os semideuses: Jones tinha um babalorixá (pai de santo) em Lobato; Alemão fazia os trabalhos com uma ialorixá (mãe de santo) em Itapuã.>
O resultado da disputa pelos poderes do panteão afro-baiano produzia hiperaxé porque os dois macumbeiros, cada qual em seu terreiro, arriavam separados seus ebós (oferendas aos orixás e voduns).>
O Bahia ficava forte em dobro: assim explicam-se vitórias místicas, nos acréscimos, lances impossíveis, a bola parecia correr por ela mesma, ou conduzida por Sangô, Oxaguian e os Ibeji peraltas rumo ao gol.>
Para completar o trio mitológico, Lourinho espetava uma fieira de bonecos nas cores dos adversários e descia para a pista em volta do campo desfilando com o suposto despacho (efeito psicológico).>
Pelo sim, pelo não, a massa vibrava com aquela figura maluca de cabelão oxigenado, passeando pelo solo sagrado do estádio, perturbando visitantes ou o Vitória, tanto fazia.>
Sou testemunha de quanto Lourinho tinha força (axé), quando ele arriou aquele bozozão no vestiário do Fluminense, time delicadinho: a farofa de dendê misturou-se à água dos chuveiros, melecando o uniforme limpinho dos cariocas.>
Nesta semifinal do bi de 1988, meu aniversário, fui pautado para cobrir o bozó de Lourinho e o duelo dos técnicos, Sérgio Cosme, e Evaristo: Bahia 2x1, de virada, tinha gente até na marquise e dali pra frente não teve Internacional certo.>
Vamos visitar o Reino de Oió e pedir a Olódùnmarè para virar em orixás os tricolores Jones, Alemão e Lourinho: cultuemos estes seres encantados com cantos e oferendas a fim de continuarem a fazer tudo pelo Bahia, agora no Orum.>
Paulo Leandro é jornalista e professor Doutor em Cultura e Sociedade>