Juiz acusa advogados de criarem 'indústria de danos morais' em cidade baiana

Magistrado extinguiu este ano mais de 2 mil ações judiciais de moradores da zona rural de Santo Estevão

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  • Mario Bitencourt

Publicado em 11 de junho de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: OAB/Divulgação

Juiz de primeira instância, Nunisvaldo dos Santos, titular do Juizado Especial Cível, abriu uma crise regional no judiciário ao acusar advogados que atuam na região de Feira de Santana de “cooptar clientela” e criar uma suposta “indústria de danos morais”. Ele extinguiu, em 23 de janeiro deste ano, mais de 2 mil ações judiciais por danos morais referentes a má prestação do serviço de água e energia na zona rural da cidade de Santo Estevão.

Por conta das declarações do juiz e em defesa dos advogados que atuam na região de Santo Estevão, a seção baiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu um desagravo (reparação de afronta) na semana passada e protestou contra o juiz.

O argumento do magistrado para a extinção dos processos foi o de que “as referidas falhas na prestação dos serviços não são específicas de uma única localidade da comarca, mas sim, generalizada”. A má prestação dos serviços de água e energia afeta cerca de 10 mil pessoas das comunidades de Fazenda Conga, Campo Alegre, Mundel, Pedra Branca, Pedra Redonda e Oleiro, e é reconhecido pelas próprias prestadoras do serviço, Embasa (de água) e Coelba (de energia).

As ações judiciais ocorrem desde 2016 e o magistrado chegou a sentenciar a favor dos moradores diversas ações por danos morais, com indenizações que variam de R$ 2 mil a R$ 5 mil, mas, diante do número crescente de ações, se julgou incompetente.

Somente contra a Embasa, são 1.771 processos, o que corresponde, segundo o juiz Nunisvaldo, a 25% das ações que tramitam no Juizado Especial Cível de Santo Estevão, de um total de 7.173.

Os primeiros moradores que buscaram a Justiça conseguiram realizar acordos judiciais tanto com a Coelba quanto com a Embasa para pagamento das indenizações – não há informações sobre a quantidade de acordos feitos.

E, quando não tinha acordo, o juiz sentenciava as empresas ao pagamento das indenizações, após inspeções in loco realizadas por ele mesmo ou por prepostos do Juizado, para ver o problema de perto.

Para o magistrado – “não se vislumbra nenhuma iniciativa por parte das demandadas [Embasa e Coelba] para a solução administrativa dos problemas, nem mesmo em longo prazo”.

Nunisvaldo dos Santos escreveu na sentença que “são cabíveis a intervenção do Ministério Público e do Judiciário com a finalidade de que a legislação seja fielmente observada e os direitos violados prontamente restabelecidos”.

Ele fez isso com base no artigo 139, capítulo 10, do Código do Processo Civil, segundo o qual o Juizado Especial deve oficiar o Ministério Público quando “se deparar com diversas demandas coletivas repetitivas” e se julgar incompetente.

Acusações gerais Na decisão que extingue os processos do Juizado Especial Cível, Nunisvaldo dos Santos faz acusações generalizadas contra advogados que atuam em Santo Estevão, de que estariam “cooptando clientela”. Em um ofício enviado ao Ministério Público da Bahia, o juiz falou que existia em Santo Estevão uma “indústria de danos morais”.Ainda na decisão, o juiz afirmou que moradores que entraram com as ações contra a Coelba e a Embasa eram “quase sempre instigados e orientados por advogados que ajuízam centenas e milhares de demandas fraudulentas e temerárias, muitas sem o conhecimento da própria parte envolvida no polo ativo da demanda”.“Estamos diante de um tema que merece tratamento prioritário e específico por não ocorrer somente no estado da Bahia, mas sim, em todo o Brasil, recentemente sendo matéria de reportagem da Rede Globo de Televisão, no Fantástico, quando foram mostradas quadrilhas e organizações criminosas, inclusive com a participação de advogados, especializadas em ajuizar ações fraudulentas e demandas repetitivas, no âmbito dos juizados especiais, fato que coloca em xeque a credibilidade do Poder Judiciário perante a sociedade”.

Esse trecho acima da sentença do magistrado, sem citar qualquer advogado ou sequer um número de processo que seja suspeito de fraude, foi o que levou a OAB-BA a emitir o desagravo em favor dos advogados.

Protesto Na última quarta-feira (5), um grupo de cerca de 30 advogados realizou uma manifestação contra o juiz na porta do fórum da cidade. Nesse mesmo dia, o juiz fez ainda outra provocação, ao declarar que “houve ações de indenização em que o polo ativo era um defunto”, sugerindo com isso uma fraude processual. Advogados reunidos na porta do Fórum de Santo Estevão: juiz devolveu ato com provocação (Foto: OAB/Divulgação) A OAB informou que estuda medidas a serem tomadas para acionar o juiz na área Cível ou na Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). A assessoria de comunicação do TJ-BA informou que consultou a Corregedoria sobre o assunto, mas não obteve resposta.

O advogado Rafael Pitombo, vice-presidente da Subseção da OAB em Feira de Santana, responsável pela área de Santo Estevão, acusa o juiz de ter mudado o entendimento a cerca das ações semelhantes que vinha julgando.“As declarações dele geraram revolta na classe dos advogados. Até que se apresente prova, não existe fraude. Não é generalizando e acusando sem provas que a situação vai ser resolvida”, declarou Pitombo.O advogado questiona o juiz sobre o suposto uso de defuntos nas ações de indenização, pois isso seria impossível de ser feito no Juizado Especial, tendo em vista que a pessoa tem de comparecer na audiência. “Seria uma causa perdida”, disse.

No ataque Ao CORREIO, o juiz Nunisvaldo dos Santos disse que a palavra do vice-presidente da Subseção da OAB de Feira de Santana “não vale nada” e que seria possível ocorrer fraude no Juizado Especial usando defunto no polo ativo por meio de tentativa de homologação de acordo extrajudicial.

“Eu não sei que argumento ele iria utilizar, e se houvesse um acordo prévio? Isso [o defunto] não impede que haja um acordo, mesmo antes de audiência. Acha que por aí ele não conseguia não? Faz acordo extrajudicial e submete a uma homologação do juiz”, disse Nunisvaldo dos Santos.

A reportagem perguntou se houve alguma situação dessa relativa aos processos, e o juiz respondeu com um “não sei”. Ele foi questionado ainda sobre as denúncias gerais que fez contra advogados, sem citar nomes ou processos suspeitos.

“Quando eu fiz a sentença, eu parti do princípio de que não há necessidade de citar nomes. É aquela história de vestir a carapuça, né?”. E disse que oficiou MP-BA e Polícia Civil sobre as supostas fraudes processuais.“Eu oficiei o Ministério Público, o delegado e pedi instauração de inquérito, mas o MP entendeu que fraude processual era diverso de crime, então parece-me que não foi a frente o inquérito; e o delegado me oficiou perguntando qual era o crime. Eu confesso que fiquei tão chateado que eu achei que era perda de tempo eu responder esse ofício. E a OAB eu não oficiei porque também achei que era perda de tempo”, declarou.O juiz Nunivaldo dos Santos esteve com o presidente do TJ-BA na sexta-feira (7), em um evento em Feira de Santana, mas disse que não conversou sobre o caso: “Tenho muitos assuntos mais importantes para tratar do que isso”.  

A Polícia Civil de Santo Estevão informou que não havia investigações na delegacia contra crimes cometidos por advogados, seja relacionados a fraudes processuais ou do Código Penal Brasileiro, que tivesse relação com as ações de indenização.

O MP-BA declarou que “existe um Procedimento Preparatório de Inquérito Civil nº 279.9.145675/2018 que visa apurar a prestação de serviços pela Embasa, duas notícias de fato nºs 279.9.199805/2018 e 279.9.209093/2018, as quais também visam apurar a existência de dano a direito individual homogêneo pela Embasa, e uma notícia de fato nº 279.9.16092/2019 para apurar eventual dano coletivo pela Coelba”.

“A 1ª Promotoria  de Justiça de Santo Estevão está realizando as diligências necessárias para apuração dos fatos, de forma a esclarecer sobre a eventual existência de dano coletivo imputado às duas empresas”, diz o comunicado.

Sem água há 11 dias Enquanto o problema não se resolve no judiciário, sobram reclamações sobre os serviços de água e energia nas comunidades rurais afetadas. Nesta segunda-feira (10), fez 11 dias que a dona de casa Júlia Xavier de Freitas, 39, não vê a água jorrar pelas torneiras da sua casa, na comunidade rural de Fazenda Conga, a 25 km da sede de Santo Estevão.

O problema, segundo relata a dona de casa, ocorre desde 2016, quando o fornecimento de água passou a ocorrer duas vezes no mês, sendo liberada pela Embasa (empresa estatal) a cada 8 a 15 dias.

Em Fazenda Conga moram cerca de 3 mil pessoas, segundo estimativas da prefeitura  de Santo Estêvão. “Tem seis meses que entrei com a ação judicial e ainda não tive resposta”, disse Júlia, que está desanimada com a situação.

Por enquanto, ela, a mãe e mais cinco irmãs que moram em casas vizinhas vão se virando com um reservatório de 3 mil litros que há no chão do quintal. “Tem dia que até vizinho vem aqui pegar um balde de água porque não tem onde pegar”, afirmou.

Não bastasse esse problema, as comunidades rurais sofrem ainda com interrupções inesperadas no fornecimento de energia, as quais, segundo dizem os moradores, danificaram vários eletrodomésticos.

As interrupções no serviço de energia ocorreram, conforme relatos, em 22 de janeiro de 2016, quando houve um apagão de sete dias; entre 14 e 15 de setembro do mesmo o ano; e do dia 9 ao dia 13 de dezembro de 2017.

Irmã de Júlia, a também dona de casa Silvana Xavier de Freitas entrou com ação contra a Coelba em 2018, com recurso no Tribunal de Justiça da Bahia contra a sentença de extinção dos processos e teve uma decisão em seu favor.

A relatora, a desembargadora Mariah Meirelles de Fonseca, da 5º Turma Recursal Cível, Consumidor, Trânsito e Criminal, em decisão no dia 26 de março de 2019, escreveu que “está demonstrado o prejuízo a parte acionante [Silvana], devendo ser desconstituída a sentença para que seja determinada a reabertura da instrução processual”. E o caso voltou à mesa de Nunisvaldo dos Santos.

Coelba se queixa das chuvas e Embasa das interrupções de energia Ao comentar os problemas de falta de energia ocorridos na zona rural de Santo Estevão, entre 2016 e 2017, a Coelba informou que as interrupções decorreram de chuvas e quedas de árvores na rede de energia.

“As oscilações decorreram de fatores climáticos como chuvas fortes acima do previsto e árvore na rede, sendo que a empresa agiu de modo rápido para solucionar os pontuais casos reclamados”, diz o comunicado. Ao contrário do que diz o juiz Nunisvaldo dos Santos, a empresa afirma que continua investindo na qualidade do serviço em Santo Estevão e região.

Em 2019, segundo informou a Coelba, “já foram inspecionados 466 km de rede de baixa tensão no município, além de 211 correções na rede, entre substituição de postes, cabos e outras estruturas do sistema elétrico”.   

Sobre a decisão do juiz Nunisvaldo dos Santos, nos processos envolvendo indenização por interrupção no fornecimento de energia, a Coelba diz que ela “está relacionada com os fatos e equívocos que o magistrado verificou em cada uma destas ações”.“A apuração dos erros e adoção de medidas corretivas no processo são missão do Judiciário, da Coelba e de todos aqueles que discordam das práticas irregulares, independentemente de quem as tenha praticado”, declarou a empresa. Sem energia Em seu comunicado, a Embasa informou que no município de Santo Estêvão, o abastecimento da sede municipal “ocorre normalmente”, mas que “eventuais interrupções no fornecimento acontecem, em ocasiões pontuais, devido a manutenções corretivas ou irregularidade no fornecimento de energia elétrica”.

Na zona rural, atendida por 15 subsistemas de abastecimento, a quantidade de manutenções corretivas, segundo e empresa estatal, tende a ser maior, devido à grande extensão da rede.

“Nessas localidades, o prazo para recuperação do sistema, após uma interrupção, também é maior do que na sede municipal, já que o tempo necessário para pressurizar a rede distribuidora é diretamente proporcional à extensão dessa rede, que é bem maior do que a da sede”, comunicou.

O Sistema Integrado de Abastecimento de Água (SIAA) de Santo Estêvão tem captação na Barragem de Pedra do Cavalo e, até a Estação de Tratamento, a água bruta é bombeada por duas estações elevatórias.

A água tratada desse sistema é aduzida por bombeamento para abastecer 23 localidades pertencentes aos municípios de Santo Estevão, Ipecaetá, Serra Preta, Anguera e Rafael Jambeiro, atendendo aproximadamente 105 mil usuários por meio de 29.806 ligações domiciliares.

De acordo com a Embasa, o SIAA de Santo Estevão disponibiliza cerca de 380 milhões de litros mensalmente, o que representa uma oferta de volume de 117 litros por habitante por dia, acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Já a Prefeitura de Santo Estevão informou que “vem buscando a cada dia universalizar o abastecimento de água e por isso vem promovendo investimento em diversas redes de abastecimento junto à Embasa”.

“Em parceria firmada entre a prefeitura de Santo Estevão e a Embasa, foram feitas a implantação de novas redes de água nas comunidades rurais de Mendes, Mamona, Lagoa Grande, Tapera, Paratigi e Capoeira do Ribeiro”, diz a Prefeitura.

Ainda segundo a Prefeitura, “também foi feito o reforço e melhoria do sistema de abastecimento de água em todo o município. Com isso, Santo Estevão alcança a marca de 92% de cobertura de água tratada da Embasa”.

“A parceria também está proporcionando a construção de mais 3 mil metros de redes de abastecimento na região de Magalhães II. Está em fase de elaboração do projeto de uma nova adutora no povoado de Sítio do Aragão, totalizando 7 km de extensão.”