Ladrões se disfarçam de operários, destroem rua e roubam fios de cobre subterrâneos

Criminosos aproveitaram que a Rua Direita do Santo Antônio Além do Carmo passa por obras de requalificação

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 29 de setembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

A Rua Direita do Santo Antônio Além do Carmo foi palco de um roubo cinematográfico na manhã desse domingo. Aproveitando que o local está sendo requalificado, cerca de 20 pessoas sem máscara, vestidas com os tradicionais uniformes de cor azul e com maquinários de grande porte, como retroescavadeiras, destruíram 60 metros de extensão de um lado da rua para levar fios de cobre que ali estavam enterrados. A ação durou cerca de quatro horas e danificou a rede de tubulação de água.  “Foi tão inacreditável que fica difícil representar num filme. No cinema se tem o jogo da credibilidade. Se você desconfia que aquilo não é crível, você abandona o filme. Um negócio como esse, depois de horas, mesmo já sabendo que não era a equipe de obras, fazia a gente se perguntar: será que foi verdade mesmo?”, questionou o cineasta Cláudio Marques, que teve a rua da frente da sua casa destruída pelo grupo.  Cansado pelos quase sete meses de obra que acontecem no local, Cláudio ficou revoltado com a ocorrência, que tirou o sossego dos moradores. “Por volta das 8h30, começou um barulho ensurdecedor. Tinha uma retroescavadeira na janela da minha casa destruindo um local que já tinha sido aberto e fechado várias vezes durante o ano. Os buracos formados tinham cerca de um metro de profundidade. Eu fiquei muito irritado, pois eles estavam mais uma vez atrapalhando o nosso domingo, dia de descanso”, disse.  

O engenhoso (e surreal) roubo de cobre no Santo Antônio: confira abaixo o podcast especial contando essa história

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Claudio saiu de casa e foi conversar com a pessoa que se apresentou como o encarregado da obra. Segundo os moradores, era um homem bem vestido, educado e que dizia que aquilo estava acontecendo no domingo para que a obra fosse adiantada e terminasse logo. “Então, eu voltei para casa, descobri que outros moradores estavam indignados também e quando retornei vi que eles estavam contando com a ajuda de guardadores de carro que ficam no Largo do Santo Antônio para puxar fios de cobre do chão escavado”, relatou o cineasta.   Diretor de Depois da Chuva (2015) e A Cidade do Futuro (2018) , Claudio Marques vive há nove anos no Santo Antônio Além do Carmo (Foto: Marina Silva/CORREIO)  Houve relatos de brigas entre os guardadores para levarem o material roubado. Foi nesse momento que ficou claro para os moradores que se tratava de uma ação criminosa. Isso chamou a atenção do grupo, que se retirou do local antes da chegada de qualquer autoridade responsável.  

Ação  Para que o roubo fosse feito, os criminosos precisavam que os carros fossem retirados da rua e, para isso, contaram com a ajuda dos próprios moradores. Uma mulher que se identificou apenas como Dona Clara foi uma das pessoas que os ajudaram. “Foi um absurdo e é uma pena que não vai acontecer nada. Eles usaram gente da comunidade para achar motoristas dos carros. Fizeram tudo na nossa frente, fingindo serem os operários. Fiquei chocada quando soube que tudo isso foi para roubar os fios de cobre”, afirmou.   Dona Clara ficou assustada com o crime cometido na sua rua (Foto: Marina Silva/CORREIO) O CORREIO esteve no local um dia depois do roubo e constatou que a rua apresentava buracos, área alagada e moradores revoltados. Todos que conversaram com a reportagem afirmaram que não faziam ideia da existência desses fios debaixo da terra. “Quem fez isso já sabia onde ia encontrar, pois foi tudo muito bem rápido e organizado”, disse um morador, que teve medo de se identificar.  

A aposentada Sonia Magnólia, 70 anos, nascida e criada na Rua Direita do Santo Antônio Além do Carmo, lembra bem do momento que os ladrões puxaram o material do chão. “Foi uma coisa horrível. Era preciso duas pessoas para puxar os fios grossos, que estavam dentro de uma borracha preta. Depois, quando tirava a borracha, vi que o fio brilhava muito, era bem dourado. Ninguém desconfiou de nada”, disse.  Ainda assustada, a aposentada Sônia Magnólia confia na proteção dos seus orixás para livrar o bairro do Santo Antônio do mau caminho (Foto: Marina Silva/CORREIO)  Os moradores mais antigos acreditam que esse material pertencia à Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba) e que eram restos da última grande obra feita no local, há mais de 20 anos. “É estranho que eles sabiam e vieram no local exato onde estavam o cobre. Até agora não veio polícia nem ninguém para investigar. Como é que esses fios valiosos estavam enterrados aqui há tanto tempo, abandonados? O roubo não começou no domingo. O desrespeito com o dinheiro público é antigo”, desabafou o morador Saul Gomes da Cruz, 60 anos.   Saul Gomes espera que a justiça seja feita e o crime seja investigado (Foto: Marina Silva/CORREIO) Posições  A Polícia Militar foi procurada, mas não se posicionou até o fechamento dessa reportagem. Já a Embasa informou que tomou conhecimento da ação de vândalos na Rua Direta do Santo Antônio por volta das 14h do domingo (27), após contato de morador feito por canal de atendimento da empresa. Ao chegar ao local, técnicos da empresa avaliaram a situação e iniciaram o conserto de três ramais da rede distribuidora de água, tendo sido necessária a interrupção temporária do fornecimento de água para todo o bairro de Santo Antônio.

Os serviços da empresa foram concluídos às 17h, quando o abastecimento começou a ser retomado gradativamente no bairro e, na manhã da segunda, alcançou a sua plena regularização. A Embasa ainda não tem a estimativa do volume de água perdido devido ao incidente.

A assessoria de comunicação da Coelba disse que não tem nenhuma informação e nenhuma denuncia sobre roubo de cabos, mas que vai enviar, nessa terça-feira (29), uma equipe de campo para tentar identifcar se os cabos são realmente da empresa.    

Em nota, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) confirmou o roubo. “A obra foi vandalizada com destruição de 60 metros de extensão da Rua Direita, já pavimentada, por uma retroescavadeira e pessoas de identidades desconhecidas que estavam em busca de cabos elétricos no subterrâneo, destruindo ainda a rede de abastecimento de água no local”, disseram.  Rua Direita do Santo Antônio apresentava trechos alagados na manhã dessa segunda-feira (28) (Foto: Marina Silva/CORREIO) Por força de contrato, a Conder disse ter requerido à Construtora Pejota, responsável pela obra, que registre queixa para que a polícia tome as providências cabíveis. No entanto, até a tarde dessa segunda-feira, a assessoria de comunicação da Policia Civil não tinha encontrado nenhuma ocorrência sobre o caso. O CORREIO tentou contato com a construtora, que prometeu retornar as ligações, mas não fez. Ainda segundo a Conder, técnicos e operários do órgão trabalharam no local danificado desde o domingo e já entregaram a pavimentação recuperada.   Funcionários da Conder tiveram que consertar os estragos deixados pelos bandidos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Para o cineasta Claudio Marques, a maneira como a obra está sendo realizada favoreceu para que o crime fosse cometido. “Se existisse uma parceria com a comunidade, a gente saberia exatamente quem são esses profissionais, saberia a data e o horário de trabalhos, saberíamos qual o material que será colocado na rua. Hoje, a nossa realidade é essa: chega um bandido aqui e não sabemos identificar se ele é realmente um bandido ou um agente do governo”, concluiu. Confira a nota completa da Conder no final do texto.  

Valioso  Um dos materiais mais rentáveis do mercado de reciclagem, o cobre pode chegar a custar até R$ 17 o quilo, se repassado para cooperativas de catadores em Salvador. Se vendido diretamente para a indústria de reaproveitamento, o lucro aumenta, e o valor do quilo chega a ficar em torno de R$ 25, conforme conta Genival Ribeiro, o Tico, líder da Cooperativa de Coleta Seletiva Cooperguary, no bairro de Periperi. 

Por causa de situações envolvendo roubos, a Cooperguary diz que não compra cobre e só aceita o material quando é doado por empresas. “Devido a essas histórias, a gente evita ser cúmplice. Então, também não aceitamos coisas como tampas de bueiros, registros de água. O cobre é mesmo o material mais caro, o melhor mas, a nível de experiência, digo que as cooperativas não têm nem dinheiro para comprar em grande volume”, explica.  Fio de chumbo tambem foi encontrado pelos bandidos, mas deixado no local, por ser de menor valor (Foto: Marina Silva/CORREIO) Tico explica que é comum ouvir relatos de que pessoas em situação de rua roubam fios de cobre para vender, mas acredita que a situação do Santo Antônio não tem a assinatura delas. “A maioria dos catadores de materiais recicláveis que vivem na rua costuma usar álcool e outras drogas, eles não teriam tamanha expertise de cavar valas dessa forma. A gente vê que alguns deles andam com sacos cambaleando, o cobre é um material muito pesado para se levar assim”, conta.  

Segundo os moradores do Santo Antônio, havia um caminhão à espera dos fios. No entanto, não há uma informação precisa do peso do material roubado, o que impossibilita que seja estimado o valor perdido.  

Ainda segundo Tico, no mercado de recicláveis comenta-se que essas práticas criminosas costumam ser feitas por ferro-velhos clandestinos. O material em fios é comercializado para ser remoldado e voltar a ser útil de novas formas, sobretudo nas indústrias da construção civil e automobilística.  

A Transalvador é um dos órgãos que também acaba sendo vítima dos roubos. Segundo a superintendência, só entre o ano passado e este, R$ 172,6 mil foram gastos pela prefeitura para recuperar semáforos vandalizados em decorrência dos furtos de cabos. Para o órgão, o motivo do interesse seria a facilidade da comercialização e o alto valor do produto. De acordo com o projeto Materioteca Sustentável, da Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), estima-se que 80% de todo o cobre extraído durante os últimos 10 mil anos ainda está sendo usado atualmente porque ele é totalmente reaproveitável. 

Na tentativa de evitar novas ocorrências, a Transalvador disse que vem implantando caixas de concreto para proteger os cabos dos semáforos e dificultar o acesso ao material. Mesmo assim, em alguns casos, os ladrões quebram as caixas de concreto e conseguem roubar. 

Confira a nota completa da Conder: A Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) informa que, na manhã de ontem (28.09), a obra de requalificação de ruas no bairro do Santo Antônio, Centro Antigo de Salvador, foi vandalizada com destruição de 60 metros de extensão da Rua Direita, já pavimentada, por uma retroescavadeira e pessoas de identidades desconhecidas que estavam em busca de cabos elétricos no subterrâneo, destruindo ainda a rede de abastecimento de água no local. 

O vandalismo foi notificado à Conder pelos próprios moradores, quando a empresa acionou seus fiscais, e os criminosos fugiram. 

Por força de contrato, a Conder já requereu a Construtora Pejota que registre queixa para que a polícia tome as providências cabíveis. 

Técnicos e operários da Conder trabalham na Rua Direita de Santo Antônio desde ontem (28) e entregam a pavimentação recuperada ainda hoje (29). 

Projeto Santo Antônio  A Conder esclarece que trabalha para minimizar os impactos da pandemia no cronograma das obras de requalificação urbana do bairro do Santo Antônio, no Centro Antigo de Salvador, principalmente na questão da logística de materiais, no revezamento dos operários e na adoção dos protocolos de segurança. 

Vale lembrar que a execução das obras também exige, simultaneamente, o serviço especializado de arqueologia, demandando maior atenção no avanço dos trabalhos, cuja conclusão está prevista para dezembro. Além disso, o setor social da Conder mantém diálogo e plantões permanentes para a população: (71) 3116-6760 e [email protected]

Interação com a comunidade  A importância histórica do Santo Antônio Além do Carmo levou o Governo do Estado a incluir as cinco principais ruas do bairro, uma extensão de 17 mil m2, num único lote do projeto, que também está sendo contemplado, além da recuperação das calçadas e da pavimentação das vias, com rebaixamento da fiação aérea das redes de energia e telecomunicação, iniciado na Rua Direita. Uma placa fixada no Largo do Santo Antônio, onde também foi instalado o canteiro de obras, já anunciava os serviços, antes mesmo do seu início. Aliás, em se tratando de transparência, o projeto Pelas Ruas tem esse diferencial: o diálogo constante com as comunidades a serem beneficiadas, antes e durante a sua execução.  

“A medida que as ações vão sendo planejadas, há essa preocupação da interação com a população de cada uma das vias beneficiadas. Antes de iniciarmos os três primeiros trechos, por exemplo, na Ladeira do Boqueirão, na Cruz do Pascoal, e na Rua Direita do Santo Antônio comunicamos os serviços que seriam realizados”, esclarece Vitor Reis, coordenador das ações no Centro Antigo de Salvador. Mais recentemente, lembra ele, após análise da equipe técnica, uma travessia elevada, localizada na Rua Direita, foi relocada em 10 metros para atender uma solicitação dos moradores. 

A escavação para a execução da vala subterrânea é outro exemplo do cuidado com a comunidade e com as normas estabelecidas pelos órgãos competentes. Como o trabalho está sendo executado em meia pista, o trânsito permanece livre em toda a extensão da obra. “Os serviços de requalificação das calçadas seguem a mesma lógica: enquanto um lado da via está em obra, no outro é garantido o acesso aos pedestres”, explica Vitor Reis. 

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.