Leite do meu coco, sons do nosso Brasil

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  • Da Redação

Publicado em 8 de novembro de 2021 às 05:07

- Atualizado há um ano

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Não precisamos mais esperar grandes canções de sucesso de Caetano Veloso. Ele já as fez todas em excesso, além do necessário. Ele e sua geração, a maior de todas, para mim. Chico Buarque, Gilberto Gil e “o imenso Milton Nascimento”, dentre outros.

Caetano virou um garoto de recado. O que poderia ser crítica é agradecimento e elogio. Seu disco Meu Coco é uma sucessão de recados que deveriam ser ouvidos para o Brasil se entender melhor. Há toda uma canção-recado para os Enzo Gabriel. Há os recados de Anjos Tronchos. E há versos aparentemente inocentes como “a palavra bunda é o português dos Brasis”, em que uma palavra que vem do quimbundo representa mais nossa língua que outras lusófonas, na canção que dá nome ao disco. Ou a definição de nossa mestiçagem; “Somos mulatos híbridos e mamelucos / E muito mais cafuzos do que tudo mais”.

Cafuzos como Letieres Leite, que nos deixou semana passada. Um arranjador, instrumentista e compositor que era unanimidade inteligente entre músicos, e que marcou seu lugar inesquecível numa linhagem que “vem de Pixinguinha a Jorge Ben” e chega à santíssima trindade da composição brasileira, “Noel, Caymmi, Ary”. “Tudo embuarcará na arca de Zumbi e Zabé”. Chico virando verbo, na grande arca brasileira de Zumbi dos Palmares e da Princesa Isabel.

Caetano fez seu Paratodos em duas canções, para que percebamos “quem é, quem és e quem sou”. Estão lá “Naras, Bethânias e Elis”. Numa antiga canção dedicada a Dedé, ele supunha: “se alguém pudesse erguer o seu GilGal em Bethânia”, e compõe GilGal, onde ele elenca, “de Pixinguinha a Jorge Ben”, referências fundamentais da nossa canção, ao som de um agueré, ritmo de Oxóssi, seu orixá.

Oxóssi da Floresta Azul, a canção talvez mais bonita da Orkestra Rumpilezz, também um agueré. Orquestra idealizada por Letieres, um dos grandes acontecimentos musicais dos últimos tempos, e que inseriu o maestro no rol dos grandes. Não demorou para o arranjador de Ivete Sangalo ser chamado por Bethânia, por Caetano, e, de repente, parte considerável do Brasil tinha projetos com ele; e ele queria ter um projeto com o “imenso Milton Nascimento”.

A ideia da orquestra, juntar sopro e percussão, remonta à tradição do carnaval. Instrumentos mais altos para se tocar sem amplificar, e fáceis de se carregar, são a base das charangas, bloquinhos, bandinhas, e bandas militares. É uma mistura clássica que ele sofisticou, juntando jazz com música afro-brasileira e toques de terreiro.

Há violão, baixo, guitarra e pocket piano em Meu Coco, mas o que fica do arranjo é o diálogo da percussão com os sopros. A gente percebe muito de Letieres, e percebe em Letieres muito do carnaval, e percebe no carnaval muito do terreiro, e percebe no terreiro muito do Brasil.

A música brasileira é uma prova concreta de que a mestiçagem não só não piora a espécie, como a melhora. Noel, Caymmi e Ary. De Pixinguinha a Jorge Ben. Caetano mandou o recado. Letieres já havia entendido. Com sua partida, vai-se uma referência primordial, um projeto de país, como foram tantos, de Carlos Lyra a Os Tincoãs.

Escutemos Caetano e suas referências no disco Meu Coco. Escutemos Letieres Leite. E, acima de tudo, escutemos o recado. Somos “nação grande demais para que alguém engula”. Amálgama mestiça que formou e deu sentido ao Brasil, como diria Darcy Ribeiro.

O Brasil tem uma grande lição a dar ao mundo, ainda. E ela virá mestiça, tranquila, infalível e apaixonadamente, que Caetano e Letieres vieram, que eu vi.