Licor de fino trato: família cria império com garrafas que custam até R$ 550

De um velho livro de receitas, família da Cidade Baixa produz 120 sabores da bebida

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  • Linda Bezerra

Publicado em 23 de junho de 2019 às 05:46

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Sora Maia/CORREIO

O marido não concordava que Edna Resch trabalhasse fora. Ainda por cima, queria mais filhos. O casal já tinha dois pré-adolescentes e era necessário cuidar de todos os afazeres da família. Para ele, a esposa já tinha muito o que fazer. Desolada com os argumentos de Cláudio, ela, então, foi se queixar com a sogra, dizendo que ia embora. Dona Antonieta Resch, uma senhora retada, tomou um susto e disse:  “Tá louca, mulher? Você não vai largar meu filho, não. E meus netos? É só trabalhar que você quer? ”.

Na mesma tarde de janeiro de 1999, a filha de italianos deixou de lado a costumeira sesta e, junto com a nora, se dedicou a uma panelona de ambrosia. A vizinhança da rua, na Cidade Baixa, comprou todos os 18 potes produzidos, ainda quentes. O dia terminou com um conselho: “Tá vendo o que é ter fé, minha filha? Oxente, vai acabar uma família por causa disso? Meu filho tá certo, você sabe do jeito que o mundo está. Não se preocupe, vá ali no meu maleiro e pegue um livro de receitas”.   O casal Claudio e Edna Resch (Foto: Sora Maia/ CORREIO) De páginas rabiscadas - e algumas já se desmanchando -, a obra trazia mais de 300 receitas de doces, salgados e dos já famosos licores que a matriarca fazia anos antes para ajudar no sustento da família. Depois que arranjou um emprego fixo de costureira no Couto Maia, ela só preparava, vez ou outra, para dar de presente a amigos, parentes e aos médicos do hospital, que se tornaram fãs da bebida.

Receita a receita, Edna foi construindo o seu império de licores e homenageou a sogra no rótulo. Antes, porém, teve que ouvir um alerta: não podia mostrar o livro a ninguém nem produzir licor de má qualidade. Dona Nieta não queria seu nome estampado “em uma garrafa de cachaça embaixo do braço de qualquer um”. A fabricação começou, então, com cinco sabores (passas, jenipapo, cajá, tamarindo, maracujá) e cada litro custava R$ 11, três vezes mais do que o de Cachoeira, cidade do Recôncavo que produz cerca de um milhão de garrafas por ano.

Como uma alquimista, a comerciante passou a testar as receitas mais complicadas, incluindo aquelas das quais a sogra desistiu. Ao lado das de pétalas de rosas, pistache e banana, ela rabiscou “não consegui fazer”. Depois de 10 anos tentando, saiu a primeira safra do licor de rosas e, emocionada, Edna cobrou R$ 350 pelo litro da bebida. Essa leva saiu em uma charmosa caixa de presente e levava taças, de brinde. Atualmente, são 120 sabores e o preço das garrafas varia de R$ 90 a R$ 550. Há lista de espera para os mais raros.

Caro? Sim. Mas para alguns, perfeitamente possível. Juízes (as), desembargadores (as), médicos (as), políticos e artistas conhecem muito bem o endereço, na Pedra Furada.O ator Érico Brás, por exemplo, já experimentou licor de tudo que é canto da Bahia - Cachoeira, Maragojipe, São Félix. “Não que os outros não sejam bons, mas o de Vó Nieta é diferenciado em tudo”, elogiou.Ama o de morango, rosas e jenipapo, que, aliás, está há 20 anos no mesmo garrafão, renovado com frutos frescos, a cada filtragem.

A notícia do licor fino se espalhou, principalmente porque o marido de Edna tem um restaurante em frente e serve a bebida como aperitivo aos clientes. Inebriados pelo cheiro e sabor, atravessam a rua para comprar e levar pra casa. Foi numa dessa que Sidney Magal caiu de amores. Levado por amigos ao restaurante Recanto da Lua Cheia, provou o de jenipapo e até hoje não esquece. “É, realmente, muito fino. O teor alcoólico é bem sutil”.

De bruxa Uma das bebidas mais consumidas no São João tem origem associada à bruxaria. Naquela época, acreditava-se que beberagens produzidas a partir de raízes e cascas tinham poderes mágicos, inclusive de encantamento amoroso. Em 1250, o alquimista catalão Arnaud Villeneuve conseguiu extrair princípios aromáticos das ervas então maceradas e em infusão no álcool. O instrutor de hotelaria do Senac, Nilton Santana, explica que esse conhecimento continuou se desenvolvendo durante toda a Idade Média, mas ficou restrito aos porões dos mosteiros e direcionado apenas à produção de xaropes e tinturas medicinais. Num salto no tempo, podemos agradecer aos monges pelos licores que saboreamos hoje.

Para o professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Jânio de Castro, é muito difícil precisar a origem do licor. Aqui no Nordeste, o aperitivo encontrou ambiente fértil na diversidade de frutas e se fortaleceu nas festas juninas – marcadas pela simplicidade – substituindo as bebidas mais caras. É que licor, cada um pode fazer o seu.“Por isso ocorre a fulanização, não é um licor de jenipapo qualquer, é o licor de jenipapo de Manuel de Santo Antonio de Jesus”, exemplifica.Como o de Vó Nieta. A marca nascida da preocupação de uma sogra continuará resguardada no significado simbólico da arte do fazer. Muitos investidores oferecem milhões para multiplicar o licor da Pedra Furada, mas no projeto de Edna não cabe produção em larga escala. O sonho continua sendo costurado na interseção entre afeto, delicadeza e o sabor das frutas colhidas no pomar da fazenda dela, na Chapada Diamantina. Ou seja, uma releitura bem pessoal do significado da palavra gourmet.

A experiência inclui degustação em taças especiais. Se o cliente tiver sorte (ou merecimento), usará, por exemplo, a dourada do conjunto que o casal ganhou dos filhos, nas bodas de prata. Segundo o marido Cláudio, o presente custou “um carro velho”. Mas, ele não pode reclamar: por causa dos licores, o casamento dura até hoje e gerou mais três crianças.

Vai lá: Rua Rio Negro, 216, Monte Serrat, Cidade Baixa | T. (71)3207-2419. Func.: todos os dias, das 8h às 22h. Aceita todos os cartões.

Os três imperdíveis 

Laranja de umbigo: o mais perfumado e saboroso. Esse licor é feito só com o óleo da casca da laranja que  é extraído lentamente com a fruta fechada, na boca de um  garrafão de vidro.  Licor de laranja de umbigo (Foto: Sora Maia/CORREIO) Dentro dele, dez  litros de cachaça e 800 gramas de açúcar vão absorvendo aroma e sabor. A fruta  fica por 12 horas gotejando o sumo, sem contato com a cachaça. A cada 24 horas, uma laranja nova, durante seis meses. R$ 90 

Açaí com cachaça: a fruta mais fitness combina com álcool, acredite. Pelo menos, nas mãos de Edna, que nos apresentou um licor improvável e delicioso. Licor de açaí (Foto: Sora Maia/CORREIO) Nas garrafas de Vó Nieta, a cachaça da Chapada Diamantina suaviza o sabor de terra  da iguaria amazônica. Sem travo - e sem granola (UFA!) - o licor desce suavente em sua versão mais  festiva.    R$ 90

Blueberry: o melhor de todos. dá vontade de beber até não conseguir pronunciar o nome da fruta. COm coloração que varia do marinho ao roxo, o licor tem vocação para virar drinques com outros ingredientes. Licor de blueberry (Foto: Sora Maia/CORREIO) É fácil fantasiar misturas com sorvete ou champanhe, por exemplo. O campeão tem um  sabor incomum mas rapidamente cria-se esse tipo de  intimidade com ele. RS 150

O raro: café e leite Para uns, mais leite e menos café. O famoso “pingado” é só uma das possibilidades de proporção entre esses dois ingredientes presentes em padarias de todo o país. Licor de café e leite (Foto: Sora Maia/CORREIO) Eles também compõem um dos licores mais especiais da casa. No nosso caso, grãos selecionados e torrados em fogão a lenha e leite de cabra. São dois licores que se misturam na taça, para os mais diversos paladares. R$ 90

Medicinais: Jurubeba, catuaba e pau d’arco prometem milagres. E pela demanda masculina devem cumprir. Segundo os clientes, alguns licores da Vó Nieta funcionam como afrodisíacos naturais. Não conferimos, mas se não o sexual, o prazer gastronômico está garantido. Entre os medicinais, provamos apenas o de pimenta: começa adocicado, meio enjoado, mas de repente a ardência toma todo o paladar R$ 90.  Jurubeba, catuaba e pau d'arco prometem milagres (Foto: Sora Maia/ CORREIO) Finíssimos, exóticos e caros Rosa, pitanga negra e pistache são os três licores mais caros: cada um custa R$ 550 e as garrafas têm 750 ml. Nem é possível degustá-los em uma visita à loja. A produção é feita sob encomenda e para clientes certos. A fama dos três se espalhou e há uma lista de espera, que chega a 45 pretendentes.   (Foto: Divulgação) É necessário tempo para se dedicar à produção. Para o de rosas, são 120 exemplares de flores vermelhas, separadas em oito buquês de pétalas trocadas a cada três meses, ao longo de dois anos.  Isso destila apenas 750 ml de licor. Já as amêndoas de pistache são retiradas inteiras e colocadas em infusão por um ano para que liberem o sabor e a cor verde-água.   O mais especial, no entanto, é o de pitanga negra. A fruta é rara e cara, dificilmente há uma boa seleção nos mercados. É preciso retirar a polpa cirurgicamente  para não ferir a semente da fruta, que é tânica. Só a partir  daí é que vai para a cachaça. Cachaça é saborizada dentro de um coco (Foto: Sora Maia/ CORREIO) Coco enterrado por um ano O único da casa que não é licor, vale destaque. A cachaça é saborizada dentro de um coco nem verde - porque oxida a bebida - e nem seco, porque fica com gosto de sabão detergente. O casco é furado com uma broca chata para receber a cachaça de boa qualidade.  Depois, é fechado com cortiça, vedado com parafina, envolvido em plástico e enterrado a uma profundidade de 50 cm, por um ano. A cachaça absorve o sabor e o aroma do coco, ganha um tom amarelado e fica suavemente saborosa. É o velho e bom “coquinho”, bem conhecido na cultura baiana,  em uma versão especial.

Como se faz um bom licor de jenipapo

1. Bons frutos  Para um litro, use 15 jenipapos grandes e sucu- lentos, amadu- recidos a ponto de cair  do pé. A fruta ‘de vez’, estado entre o maduro e o verde, deixa a bebida adstrigente, o que não é bom  

2. Higienização Os frutos devem ser lavados em água corrente. Depois, precisam ficar  de molho em sanitizante de frutas, por dez minutos. Deixe escorrer até que fiquem sequinhos 

3. Só a polpa Após a higienização, tire  sementes e casca,   inclusive aquela parte que parece uma lixa. Isso evita o ranço na bebida

4. Maturação Com a polpa cortada, adicione 1  1/2 xícara de açúcar e 1     1/2 xícara de cachaça. Não coloque água de jeito nenhum. Deixe descansar. 

5. Coador de algodão Após, pelo menos, 90 dias do fruto na infusão, ponha a mistura em um coador de algodão esterilizado e esprema até soltar todo o néctar da fruta. Não podem passar resíduos  

6. Ajuste a cachaça Durante a imersão, o álcool pode evaporar. Com um densímetro, aparelho que parece um termômetro, meça o teor alcoólico, que deve ser 14%  

7. No ponto O líquido tem cor  caramelada. O gosto deve ser o equilíbrio entre a cachaça, a fruta e o açucar.  O licor não pode arranhar a garganta 

Conheça alguns sabores 

1.      Açaí   2.     Acerola  3.     Amarula  4.     Amendoim  5.     Ameixa  6.     Banana 7.     Cajá 8.     Caju 9.     Café  10.     Chocolate 11.     Chocolate belga com avelã  12.     Chocolate belga com malte  13.     Chocolate belga com pimenta 14.     Coco 15.     Cupuaçu 16.     Jenipapo 17.     Goiaba 18.     Graviola  19.     Jabuticaba  20.     Jurubeba 21.     Limão rosa 22.     Laranja 23.     Maracujá 24.     Limão siciliano 25.     Mangaba  26.     Manga  27.     Milho verde  28.     Pêssego  29.     Pitanga  30.     Tamarindo  31.     Tangerina 32.     Umbu  33.     Pupunha 34.     Amora  35.     Framboesa 36.     Alho negro 37.     Leite  38.     Blueberry  39.     Abacaxi 40.     Jaca  41.     Uva  42.     Pétalas de rosas 43.     Pau d’Arco  44.     Jatobá 45.     Batata doce 46.     Melancia 47.     Pitaya 48.     Gabriela Cravo e Canela  49.     Pistache 50.     Licuri  51.     Lima  52.     Doce de leite  53.     Pistache  54.     Pitangas negras 55.     Maçã verde  56.     Morango  57.     Tamarindo 58.     Passas  59.     Groselha  60.     Cambuí  61.     Menta  62.     Araçá 63.     Damasco  64.     Figo 65.     Anis 67.     Gengibre 68.     Amora 69.     Cupuaçu com castanha do Pará 70.     Cacau 71.     Pêssego 72.     Nozes 73.     Cajarana