Louca, ressentida, aproveitadora: o lugar reservado às mães nas varas de família

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 6 de março de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Não é uma minoria, não são casos isolados. Obrigadas a manter “segredo de justiça”, muitas mulheres vivem momentos de altíssimo estresse, submetidas ao olhar e julgamento masculinos que ainda ditam as regras, no mundo jurídico. Essa é a realidade de mães que procuram - ou são levadas a - mesa de juízes, onde vêm as relações com seus filhos e filhas serem decididas muitas vezes com veredictos alicerçados em velhos clichês, na cumplicidade entre homens, na mais explícita misoginia. Essa é a denúncia que fazem mulheres que passam pelos processos. Cada vez mais advogadas passam a questionar os abusos recorrentes e a estar, de forma mais contundente, ao lado de suas clientes. Nesses casos, o trabalho vai além da advocacia. É também apoio emocional, militância, um jeito de estar no mundo que inclui questionar velhos padrões, apontar injustiças e trazer à luz questões como as que Marina e Ezilda iluminam, hoje, pra gente, numa QuantA especial que teve também a consultoria da advogada Mariana Régis (@marianaregisadvogada). Marina Ruzzi (@marinaruzzi.adv) é advogada formada pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado em gestão de políticas públicas na mesma instituição. É também sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas, primeiro escritório do país especializado em gênero. (Foto: Braga Ruzzi/Divulgação) Quanta - O que o olhar do jurídico para a mãe, nos processos judiciais que envolvem seus filhos e filhas, traz do machismo estrutural que ainda vivemos? Marina Ruzzi - O poder judiciário reflete as visões que carregamos em nossa sociedade. Dessa forma, é muito comum que em causas em que haja algum tipo de especificidade de gênero, que as mulheres sejam vistas a partir de estereótipos bastante machistas, como o da "mulher louca", "vingativa", "mãe desnaturada" etc. Esses estereótipos, a meu ver, retiram do poder judiciário a habilidade de julgar de maneira imparcial, uma vez que se utilizam deles, muitas vezes motivados pela argumentação da outra parte, para valorar de maneira distinta as partes. Então, as expectativas que recaem sobre as mães e os pais, por exemplo, são bastante diferentes, levando a algumas injustiças.

A guarda compartilhada de filhos/as é sempre a melhor solução? Mesmo quando a mãe exerce a guarda de fato e tem dificuldades na comunicação com o pai dos/as filhos/as? A guarda compartilhada é um avanço, pois busca trazer a responsabilidade da criação dos filhos para ambos os genitores, chamando em especial os homens a desempenharem um papel que em nossa sociedade não se espera deles. Além disso, como a guarda compartilhada pressupõe maior presença de ambos os genitores, entendo que é do melhor interesse do menor, que tem direito a convivência familiar, a receber carinho e também disciplina de ambos os pais. Contudo, para o exercício da guarda compartilhada, é necessário que haja diálogo entre os genitores, para que as decisões fluam de maneira orgânica e o menor não fique no meio de uma queda de braço que envolve mágoas passadas, exercício de controle etc. Na prática, vemos que muitos genitores - em geral os homens - se utilizam da guarda compartilhada para dar vazão a seus ressentimentos em relação à ex-esposa, colocando obstáculos desnecessários e muitas vezes cruéis ao exercício da criação dos menores e também contaminando a criança com visões particulares a respeito do outro genitor. Dessa forma, entendo que ainda que seja algo a ser perseguido pelo judiciário, devem ser analisadas as particularidades de cada caso para ver se os interesses do menor serão atendidos ou se tal forma de exercício de guarda apenas amplificará conflitos.

Em que lugar está o conceito de “melhor interesse da criança” quando o judiciário expõe suas mães à sobrecarga financeira e se cala diante de outras violências praticadas pelos pais? Há uma dificuldade do poder judiciário de entender que violências praticadas contra suas mães - sejam físicas, psicológicas ou até mesmo financeiras - respingam nas crianças. Muitos profissionais ainda tem uma mentalidade de separar a criança da genitora nessas circunstâncias, o que pra mim, se mostra como uma visão míope da realidade familiar.

Como agir quando há a suspeita de que um filho ou filha ouve pai, mãe e/ou família paterna/materna desqualificando o outro genitor, sem expor a criança às desgastantes perícias e processos? Porque isso traz evidentes prejuízos para as crianças, mas a forma judicial de lidar também não contempla a fragilidade de pessoas em formação. É muito importante conversar com a criança para entender como esse possível processo está acontecendo e como ela está se sentindo em relação a ele. Claramente, essas campanhas difamatórias são muito prejudiciais em relação à criança, pois ela se sente dividida entre os genitores e também pode ter sua visão de um dos pais contaminada pela visão do outro, em especial pois elas são especialmente vulneráveis. Mas é importante que durante essa "investigação", não se faça o mesmo processo, demonstrando descontentamento ou então criticando a outra pessoa para alimentar esse sentimento de divisão que está sendo imposto à criança. Levar a criança a terapia, para que ela possa se fortalecer, é algo sempre recomendável.

Como a justiça tem se comportado os casos de pedido de guarda paterna, com discordância da mãe? Que pontos são avaliados e como as mães podem se proteger de homens que, muitas vezes, pedem a guarda apenas para parar de pagar pensão? Quando se vai avaliar um pedido de guarda unilateral, deve ser analisado qual o melhor interesse do melhor. Com quem a criança se sente mais à vontade? Quem tem condições de melhor cuidar dela e atender às suas necessidades? Porque a guarda não leva em consideração a possibilidade econômica (uma eventual disparidade é corrigida a partir da pensão) e sim as condições de cuidar do menor. Além disso, o que é mais levado em consideração é o status quo, ou seja, preservar a condição da criança naquele momento, se ela estiver confortável e segura. De modo geral, a criança é submetida a perícia e a partir desses relatórios os juízes acabam decidindo com quem a criança ficar. Esses profissionais devem ser capazes de verificar quais são as principais motivações do genitor e isso acaba sendo revelado no processo.

Em linhas gerais, como se comportam (ou deveriam se comportar) pais e juízes dignos, no trato de questões tão delicadas como as que correm nas varas de família? De modo geral, deveriam sempre tentar viabilizar o diálogo, se ater aos fatos específicos que sejam pertinentes ao processo e tentar ao máximo deixar a criança fora da discussão que possa estar havendo no processo. Na minha opinião, contudo, entendo que os casos de família deveriam sempre que possível ser resolvidos extrajudicialmente, uma vez que reconstruir a relação a partir do diálogo é sempre do melhor interesse de todos. Além disso, o juiz, apesar de se amparar em laudos etc, é uma pessoa externa que não tem condições de, de fato, ver qual seria a melhor situação para aquela família em concreto, em especial porque deixaria as regras mais rígidas quando a vida, como sabemos, está sujeita a muitas variações

Ezilda Melo (@ezildamelo) é advogada, mestra em Direito pela UFBA, professora universitária e sócia do escritório BI.O (@businessimpactoffice) (Foto: Divulgação) Quanta – Quais são as maiores “armadilhas” pra as mulheres nos processos de guarda, alimentos e afins? Ezilda - As mulheres que precisam recorrer ao Judiciário para tratar sobre questões de família que envolvem seus filhos, primeiro se deparam com a dificuldade de encontrar um profissional da advocacia que tenha empatia e que consiga identificar as violências históricas narradas em cada ação. Em segundo lugar, essa mulher se depara com a demora processual, que em si já representa uma violência do sistema jurídico contra todos de que dele precisam. Também figura como "armadilha" a própria construção das leis que tratam de questões como alienação parental, utilizada por muitos homens para fustigar mães quando se está diante, por exemplo, da autoalienação dos pais omissos e que não têm responsabilidade afetiva e financeira para com seus filhos.  A própria lei da guarda compartilhada é uma armadilha também, especialmente quando os pais não convivem harmonicamente ou em casos nos quais há violência doméstica.

Como uma mãe deve se preparar para enfrentar um jurídico majoritariamente masculino e o pai dos filhos/as, em processos judiciais? Uma mãe quando enfrentará um processo judicial precisa, antes de tudo, preparar-se para uma guerra incerta. Precisa ter consciência que a cultura política institucional do judiciário segue uma lógica patriarcal. Portanto, é um espaço onde violências institucionais podem ocorrer. Preparar-se para isso traz um desafio para muitas mulheres no Brasil, neste exato momento. A luta por reconhecimento de direitos, a luta das mulheres pelo fim do feminicídio e da violência "civilizatória", a comprovação que vínculos afetivos chegam ao judiciário com marcas cruéis da convivência humana, são questões que precisamos ter em mente quando falamos dos direitos humanos e das causas das mulheres.

Muitos casos desgastam as mulheres de forma devastadora. Até que ponto o “segredo de justiça” deve ser mantido quando se sofre violências em mesas de audiência e nos autos do processo? A mulher, vítima desses abusos, não deveria publicar, pedir socorro e expor calúnias, por exemplo? O silêncio das mulheres que sofrem violências é a prova que há modos de silenciar as injustiças. Quantos homens não ingressam com difamação, injúria e calúnia quando sabem que as mulheres vítimas trazem a público essas narrativas? Sigilo para que? Para que não saibamos que as varas de família são lugares que trazem narrativas de histórias de violência patrimonial, psicológica, familiar, perpetradas por injustiças que nos cercam, que precisam ser compartilhadas para que a união entre outras mulheres possa combater esse lugar do homem opressor que afugenta mães e filhos.

Um dos textos masculinos mais clássicos é a acusação de que a mulher usa a pensão para benefício próprio. O que ela deve fazer nessas situações? A utilização do discurso de que a pensão serve para gastos pessoais das mães é uma falácia. As pensões irrisórias, mais filhos que têm em outros casamentos para diminuir pensões anteriores, a fraude na execução destes valores, a mesquinhez para dividir gastos extras, para presentear, comprovam que estamos diante de violência patrimonial contra as mulheres.  A leitura de violência patrimonial deve ser compreendida dentro de um conceito que dê conta dessas situações, inclusive porque os baixos valores perduram, geralmente, durante o período da infância e da primeira juventude, onde filhos precisam de uma estrutura que lhe dê condições para caminhar. Educação, saúde, alimentação, vestuário, viagens, lazer, transporte... e todos os gastos reais com filhos, não deixam margem a gastos supérfluos de mães. Quando um pai paga um valor irrisório, quem corre atrás para pagar para os filhos o que faltou na pensão, é a mãe que enfrenta, inclusive, situações de trabalho desiguais. Esse discurso é machista e violento. As pensões para filhos em percentuais abaixo do verdadeiro padrão paterno é mais uma violência e essa serve para o empobrecimento feminino.

O pai das crianças tem direito à “prestação de contas” do valor pago da pensão? A prestação de contas dos valores de pensão dos filhos é a comprovação da vigilância nos relacionamentos afetivos. Uma das situações mais difíceis para que se comprove todos os gastos com os filhos, começa, por exemplo, na própria dificuldade em manter todos os comprovantes, vez que nem tudo tem nota fiscal, recibo ou o pagamento é feito através de cartão de débito ou crédito. Além disso, a independência da mãe com o dinheiro fica impossibilitada ao dar visibilidade a extratos pessoais, quando o contrário não ocorre. Uma das dificuldades maiores é comprovar os rendimentos reais dos pais que querem violar os direitos dos filhos. Criar filhos é caro e gera responsabilidade.  É preciso ter consciência disso. Esse custo não pode ser somente das mães. Inclusive, 50% para cada genitor é manter a conta mais alta para as mulheres que detêm a guarda.

Ainda há uma maioria de juízes homens. Isso tende a interferir nas decisões judiciais? Como deve agir a mulher eu se sentir vítima de um olhar machista, nesses casos? Uma mulher que se sinta vítima de um juiz machista, numa mesa de audiência, ou nas narrativas de sentença, deve fazer uma denúncia ao Conselho Nacional de Justiça. Os casos de denúncia destes profissionais demonstram que ainda são poucos os denunciados e punidos com essas práticas, mas eles existem, sem dúvidas.