Machismo exposto no caso Mariana Ferrer põe a Justiça no banco dos réus

Cenas da jovem sendo humilhada evidenciam como o Sistema de Justiça brasileiro trata as vítimas de crime sexuais

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Publicado em 8 de novembro de 2020 às 17:10

- Atualizado há um ano

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"Ela provocou, ela levou a esse estado de espírito este homem que era um rapagão, um mancebo bonito, um exemplar humano belo que se encantou pela beleza e pela sedução de uma mulher fatal. De uma vênus lasciva. (...) Prostituta de alto luxo da Babilônia."

Rio de Janeiro, outubro de 1979. Palavras do advogado Evandro Lins e Silva, descrevendo a socialite Ângela Diniz, assassinada pelo namorado Doca Street, durante julgamento do crime.

"Pra abrir as pernas e dá o (...) pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Tu é uma pessoa de sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá. Porque tu é criminosa."

Rio Grande do Sul, fevereiro de 2014. Palavras do promotor Theodoro Alexandre da Silva Silveira, humilhando uma adolescente, estuprada pelo próprio pai, durante umas das audiências do julgamento do caso.

"Peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. (...) Foto com dedinho na boca... (...) posições ginecológicas... (...) "Esse é o seu ganha-pão, né? É o seu ganha-pão a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem."

Santa Catarina, setembro de 2020. Palavras do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, humilhando a influencer Mariana Ferrer, em uma das audiências de julgamento do crime de estupro de vulnerável.

Uma mulher de 32 anos, uma menina de 14, uma jovem de 23. Cada uma, à sua época e em lugares distintos, todas receberam o mesmo tratamento: eram vítimas, mas foram empurradas para o banco dos réus. No que diz respeito aos crimes de gênero, o exercício da defesa de acusados às custas da humilhação e culpabilização da mulher é padrão no Sistema Judiciário brasileiro. Ontem e hoje. As cenas grotescas que assombraram o país na última terça-feira (3), após divulgação pelo site The Intercept de trechos da audiência com a influencer Mariana Ferrer, exigem ser vistas pelo que são: um ato extremo de violência e horror. Mas estão longe de serem situações pontuais.

A postura machista e misógina do advogado, reforçada pelo silenciamento do promotor, do próprio defensor da vítima e do magistrado, permeiam toda a engrenagem judicial. É fundamental cobrar a responsabilização individual dos agentes envolvidos na agressão, seja pela ação ou omissão. Mas é igualmente necessário que essa violência cotidiana seja exposta e combatida no campo onde ela se alimenta e se reproduz.

Eu fiquei chocada. Tive que dar pausa, me recuperar, para terminar de ver e ouvir aquelas palavras. Uma frase do advogado foi marcante pra mim: 'Deus me livre ter uma filha do seu nível'. Aquele comentário nada tinha a ver com o processo, mas diz muito sobre a violência verbal e psicológica que aquela mulher sofreu, mesmo sendo ela a vítima, naquela sala virtual", pontua a advogada Daniela Borges, presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

No dia seguinte à divulgação das imagens, a comissão divulgou uma nota de repúdio, enfatizando uma das questões centrais do debate que o caso gerou. "Os números mostram que 75% das vítimas de crimes sexuais em nosso país não denunciam. E, por mais que sejam feitas campanhas estimulando que as mulheres denunciem, esse número não mudará enquanto o sistema de justiça brasileiro não mudar estruturalmente como atua no julgamento dos crimes sexuais", diz o comunicado."Sem acolhimento, a revitimização é destino certo para as mulheres que se arriscam a brigar por justiça. A postura que vimos na audiência já começa na delegacia. A mulher tem sua palavra colocada em dúvida já na porta de entrada do sistema", reforça a advogada criminalista Fernanda Lima.

Moral Sexual da MulherUma lógica de atuação exposta, de forma contundente, pela professora do curso de direito da Universidade de Brasília Camila Prando. "Como ficou muito visível, nas cenas da audiência da jovem Mariana, quem passa a ser julgado não é o acusado, mas a vítima. Ela passa a ser o centro do processo, a pessoa sobre a qual recaem as suspeitas. Porque no fundo o que estava acontecendo ali era um julgamento sobre a moral sexual daquela mulher", analisa.

A professora observa que há, no Sistema de Justiça, um pacto silencioso, fundado em bases machistas e na desigualdade de gênero, que supõe que mulheres que não seguem um padrão, dentro do que se espera numa sociedade patriarcal, podem ser violentadas. Porque a culpa, de alguma forma, é delas. Não custa lembrar o quanto essa estratégia ficou evidente na atitude do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, ao mostrar fotografias de Mariana em poses sensuais, mesmo que as imagens nada tivessem a ver com o crime de estupro que estava em julgamento.

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Por mais chocante que seja, a violência sofrida pela influencer não chega a espantar quem faz pesquisa na área de violência de gênero. A professora de direito penal da Universidade Federal de Pernambuco Marília Montenegro diz que essas humilhações são situações recorrentes, embora não tenham visibilidade. Os casos que chegam à mídia é por um recorte social. "A violência sofrida por essa jovem só chegou ao Judiciário porque ela é uma vítima branca. E, mesmo assim, vimos que ela foi destruída, na frente do promotor e do juiz, sem que nada fosse feito para deter o advogado. Isso dá uma ideia do quanto o Sistema de Justiça é perverso."

Marília questiona se a presunção de inocência, argumentada pelo juiz para não condenar o empresário André de Camargo Aranha, sob alegação de falta de provas, se repetiria não fosse o perfil do acusado, um homem branco, rico e de prestígio social. "Esse garantismo é seletivo e machista. Num tráfico de drogas, que só tem a palavra do policial militar, a justiça não costuma considerar a presunção de inocência dos acusados", compara. A promotora de Justiça do Pará e professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará Ana Cláudia Pinho reforça esse entendimento, afirmando que o sistema de justiça é autoritário desde o nascedouro, feito por homens brancos, para homens brancos. "Arrisco dizer que, nesse caso de julgamento de estupro, se o acusado fosse um negro e pobre, o desfecho poderia ter sido outro."

"DEFESA CRIMINOSA"

Apesar de classificar a postura do advogado do empresário como uma "defesa criminosa" e de chamar o interrogatório a que Mariana foi submetida de uma "execração pública", a promotora não acredita que haverá punição para nenhum dos agentes que participaram da audiência. "Essa punição exemplar é muito difícil de acontecer. Os órgãos de classe possuem uma estrutura extremamente condescendente. Não será daí que virá a pressão, mas da sociedade. Se não vier de fora, é difícil mudar esse sistema de justiça por dentro.", avalia Ana Cláudia Pinho.

Citado no início desta reportagem, o julgamento do assassinato da socialite Ângela Diniz também terminou com a Justiça inocentando o assassino, acatando a tese da defesa de que a vítima havia sido morta em "legítima defesa da honra". A escandalosa decisão produziu o primeiro de uma série de movimentos feministas de protesto contra a violência doméstica e o feminicídio, sob o lema "quem ama não mata". A pressão do movimento levou a um novo julgamento de Doca Street, que, dessa vez, terminou condenado a 15 anos de prisão.

Em artigo escrito para o site Consultor Jurídico, o jurista gaúcho Lenio Streck defende a anulação do julgamento que inocentou o empresário acusado de estupro, com o argumento de que não é possível analisar a decisão judicial, ignorando a humilhação sofrida pela jovem na audiência. "Uma sentença não é separada do todo. Não se interpreta ou julga em fatias. O processo está contaminado", diz o jurista (veja entrevista ao lado). Entendimento endossado pelos especialistas ouvidos nesta reportagem. No dia em que as imagens da audiência foram divulgadas, o assunto mobilizou as redes sociais, provocou reações do Conselho Nacional de Justiça, do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e da sociedade civil. Resta saber o quanto essa pressão será capaz de dar a Mariana Ferrer a voz que lhe foi tirada.

*Matéria publicada originalmente no Jornal do Commercio, parceiro do CORREIO pela Rede Nordeste