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Mãe Aíce de Oxossi é enterrada com homenagens no Campo Santo


 

Por mais de 20 anos, líder religiosa do Terreiro Ilê Axé Odê Mirim foi responsável por preparar as ofertas a Iemanjá e fazia campanha contra a intolerância

  • Roberto Midlej

Publicado em 16/06/2017 às 17:06:00
Atualizado em 17/04/2023 às 05:38:05

Mãe Aíce de Oxossi é enterrada com homenagens no Campo Santo (Foto: Almiro Lopes/Arquivo CORREIO)No próximo 2 de fevereiro, Iemanjá e Oxum vão sentir falta de um presente especial preparado pela ialorixá Mãe Aíce de Oxossi, que liderava o terreiro Ilê Axé Odê Mirim, no Engenho Velho da Federação. A religiosa, que morreu aos 82 anos, na madrugada desta quinta-feira (15), por causa não revelada, coordenava a parte religiosa da Festa de Iemanjá no Rio Vermelho e foi a responsável por preparar as ofertas para a Rainha do Mar por mais de 20 anos, até o ano passado.

"Ela fazia presentes lindos, com todo zelo para a Rainha. No candomblé, nós somos escolhidos e ela foi a escolhida por Iemanjá", disse Ubiraci Carlúcio dos Santos, professor do Instituto Federal da Bahia e adepto do candomblé. Ubiraci acompanhou o cortejo fúnebre que saiu do Terreiro até o Cemitério do Campo Santo, onde a mãe de santo foi enterrada às dez horas da manhã.Luis Miguel de Oxossi, que frequenta o Ilê Axé Odê Mirim há 32 anos e é filho da casa, lembra que entre os presentes que Mãe Aíce oferecia estavam comidas secas como omolocum (à base de feijão fradinho), ipeté (massa de inhame) e ebô para oxalá (mingau de milho branco). "Ela cumpria todos os fundamentos sempre com o coração aberto e depois outro terreiro assumiu o preparo dos presentes. Mas, espiritualmente, ela ainda os preparava".Os religiosos que estavam no enterro não quiseram apontar exatamente o motivo por que o Ilê Axé Odê Mirim deixou de ser o terreiro responsável pela preparação dos presentes. "Foi uma coisa particular de Mãe Aíce com o presidente da associação responsável pela festa do Rio Vermelho. Mas a saída foi na boa amizade", disse um deles que não quis se identificar.Pai Ducho de Ogum, filho de santo de Mãe Aíce, frequenta o Terreiro dela há 43 anos. "Ela era madrinha de minha mãe e eu fui criado no Terreiro. Tinha mais de 500 filhos de santo e eu era um deles. Tinha mais de 50 anos de axé. Os presentes que preparava para Iemanjá eram bijuterias, sabonetes, flores... Tudo o que uma deusa do amor vaidosa merecia", lembra.Os que estavam presentes no enterro destacaram também o trabalho de Mãe Aíce contra a intolerância. "Ela preservou o legado africano e estava sempre numa caminhada que ocorre há 15 anos, que integrava os terreiros e promovia palavras de respeito entre os terreiros e as outras religiões", disse Edmilson Sales, ogã do terreiro do Bogum do Jeje.Familiares da mãe de santo, como as filhas Ana e Vera, e um neto, pediram para não falar com o CORREIO, alegando que estavam abalados emocionalmente.

Carlinhos Brown, que por 14 anos acompanhou a entrega do presente de Oxum no Dique ao lado de mãe Aíce, demonstrou a importância dela na sua vida e na Bahia através de uma declaração exclusiva para o CORREIO. Ouça na integra abaixo: 

“Conheci mãe Aíce ainda criança, nas festas de Iemanjá que aconteciam próximo ao Candeal, onde eu ia participar dos sambões. Muitos anos depois, eu fui suspenso para fazer o presente principal, por 14 anos. Tive a oportunidade de estar ao lado dela por esses 14 anos e descobri o seu empenho, a sua força, tudo que ela fazia dentro daquela cultura, da forma como o mundo via mãe Aíce, mas que a Bahia virava as costas. Ela herdou da mãe de santo dela esse fazer do presente, que ficou confuso nos últimos tempos, eu senti que ela já estava bastante sofrida com os rumos que o presente de Iemanjá estava tomando. Mas ela jamais deixou de fazer o outro presente (de Oxum) que é tão importante quanto. É mais um presente ao qual a Bahia vira as costas, e quase sai atropelando todo mundo no Dique do Tororó, um dia antes do presente de Iemanjá. O que é realmente perigoso, fora a falta de atenção, é a velocidade que os carros descem ali com tantas senhoras Ialorixás passando. Por que estou falando isso? Ela me pediu para delatar isso muitas vezes, e agora que ela está ausente, sua voz continua através dos filhos que ela cuidou. Mãe Aíce é também a pessoa responsável por cruzar Barra e Ondina, nunca deixamos de fazer as oferendas, só não vamos aonde o Gandhi faz o seu padê e dá a sua comida. Esse é o nosso comprometimento com a realidade e com o cuidado da espiritualidade na Bahia. Ela tem um terreiro muito bem feito, muito edificado, mas que corre o risco de desmontar. O mais curioso é quando chego no terreiro, no dia 2, encontro autoridades, a BBC de Londres, documentaristas, gente fazendo de tudo. Ela sempre teve esse poder atrair as pessoas para perto. Mas o maior poder dela, sendo uma força de Oxóssi, é um dia, em uma quinta-feira (dia do orixá) nos deixar, mas nos deixa com uma fé ativa, de que há esperança, de que no nosso desespero sempre podemos encontrar uma Ialôrixá para nos dar um conselho, para nos conduzir a calma. Mãe Aíce deixará essa saudade, essa lacuna de alguém que faz o papel da mãe que não está presente, que está trabalhando ou que Deus já levou. Ela está no Orum e nós confiamos, vamos tentar seguir seu legado, porque o presente de Oxum no Dique, não pode parar. ”