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Da Redação
Publicado em 21 de outubro de 2022 às 20:50
Nesta sexta-feira (21), Márcia Mendes, de 52 anos, saiu de Cajazeiras VIII às 7h, pegou dois ônibus e andou debaixo de sol por quase 2 km. O objetivo era chegar à sede do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), no bairro da Barra, em Salvador, antes das 11h. E ela não só conseguiu como, também, foi a primeira. Lá, a dona de casa se juntou a outras mães, pacientes, médicos, pesquisadores e ativistas num protesto contra a Resolução 2.324/2022, publicada no dia 11 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). >
O documento restringe o uso do canabidiol ao tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes que não respondam às terapias convencionais nas síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa. Apesar de haver poucas mudanças em relação à Resolução 2.113/2014 — que não especificava os casos de epilepsia refratária —, a medida representa um retrocesso, segundo o presidente da Associação para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (Cannab), Leandro Stelitano. >
“Mesmo assim, desde 2014, os médicos no Brasil prescrevem para mais de 30 patologias”, afirma Stelitano. Daí, a preocupação de Márcia, mãe de Mateus, 14. O adolescente tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) de nível três, considerado severo e, há cerca de um ano, vinha fazendo tratamento com uso de canabidiol. “Ele se machuca, é agressivo, não fala, usa fralda... E as outras medicações que eu tô dando a ele não fazem tanto efeito”, conta. >
Mas engana-se quem pensa que apenas mães de crianças e adolescentes batalham pelo direito de seus filhos a uma vida digna. A aposentada Adarcy Vasconcelos, 66, se dedica ao cuidado de Valmira, 47, que, há quase dez anos, sofre da doença de Huntington, uma patologia genética que se manifesta só após os 30. >
Ao contrário de seu irmão, morto há quatro anos, em decorrência da mesma doença, Valmira pôde, no fim do ano passado, ter acesso gratuito ao tratamento com canabidiol. E a substância, administrada com outros três medicamentos, surtiu efeito. “Ela nem conversava e não ficava em pé, nem sentada. Depois que começou a usar o canabidiol, melhorou bastante”, comenta Adarcy. >
Outros pontos >
Segundo Leandro Stelitano, outro ponto importante é que, na resolução anterior, apenas neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras podiam prescrever a Cannabis medicinal, e, com a alteração, o CFM ‘abre’ a possibilidade para médicos de quaisquer especialidades. >
Por outro lado, permanece vedada aos profissionais a prescrição de Cannabis in natura ou de outros derivados que não o canabidiol. Além disso, passa a ser proibido ministrar palestras e cursos sobre uso do canabidiol ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, assim como fazer divulgação publicitária. >
Na segunda-feira, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento preparatório (PP), para apurar a compatibilidade da resolução do CFM. Como primeiras providências, o MPF requisitou à Anvisa documentos que consubstanciem as evidências científicas que sustentam a RDC 327/2019, e a RDC 335/2020. >
Igualmente, requisitou ao CFM documentos que traduzem as evidências científicas que sustentam a Resolução 2.324/2022. Por fim, requisitou ao Ministério da Saúde informações sobre as repercussões administrativas, financeiras e técnicas no SUS das resoluções da Anvisa e do CFM. O prazo para as respostas é 15 dias. >
Em nota, o CFM diz que “em paralelo, esta autarquia continuará aberta ao debate e, por meio de seus conselheiros e especialistas, seguirá acompanhando a evolução de estudos científicos relacionados ao canabidiol”. Além disso, uma Consulta Pública será aberta, pelo conselho, no dia 24, a fim de, até 23 de dezembro, “receber contribuições visando à atualização dessa Resolução [2.324]”. >
Procurado pela reportagem, o Cremeb afirmou que seu posicionamento sobre a Resolução 2.324/2022, é que os pontos a serem esclarecidos estão registrados no referido documento.>
A resolução>
Durante o ato em frente ao Cremeb, os manifestantes acusavam a resolução do CFM de ser ‘conservadora, anticiência e retrógrada’. Para o advogado Rodrigo Camarão, especialista em Direito Médico, embora o conselho federal tenha competência para regulamentar o exercício da profissão, suas resoluções devem estar em concordância com o direito à saúde, previsto em lei e na Constituição. "O direito à saúde tem como decorrente lógico o direito ao tratamento adequado das patologias e seus sintomas, bem como da promoção da qualidade de vida, sempre em acordo com o estado mais atual do conhecimento científico”, explica. >
Isso significa que, se a resolução do CFM vier a vedar determinado uso terapêutico de uma substância indo de encontro às evidências científicas disponíveis, pode ser revista ou até cassada pela Justiça. “Neste sentido, a atuação do MPF no questionamento da legalidade da Resolução 2.324 é muito bem-vinda, pois irá aprofundar o debate sobre as circunstâncias técnicas, científicas e políticas que deram origem à esta nova regulamentação", analisa Camarão.>
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), até setembro deste ano, houve 40.989 autorizações de importação excepcional de medicamentos à base de Cannabis — número já superior ao de todo o ano passado (39.855) e mais que o dobro do de 2020 (18.970). Atualmente, por ser um tratamento caro, muitas pessoas têm acesso por via judicial."Já é um tratamento de difícil acesso, custoso e burocrático. E, quando a gente tem uma decisão oficial que é contra esse tratamento, é contra a saúde e a vida das pessoas", acrescenta a médica de Família e Comunidade Mariane Ventura, estudiosa da Cannabis e voluntária na Cannab.PL e acesso ao tratamento >
O Projeto de Lei (PL) 172, de autoria do vereador André Fraga (PV) e que tramita na Câmara Municipal de Salvador, visa oferecer, pelo SUS, o tratamento com canabinoides. “A ideia é criar um ambiente que permita a produção de conhecimento científico, mas, principalmente, que proporcione o fornecimento dos remédios para pessoas quem não têm condições de adquirir”, explica Fraga. >
Hoje, além da Cannab, organizações como a Associação de Apoio ao Tratamento com Canabinoides (Aatamed) desenvolve pesquisas e assessora o paciente no acesso a medicamentos produzidos a partir de derivados da planta. >