Mais talentoso dos capitães da areia, Jhordan Matheus deslancha após abraço de Exu

Humorista do Engenho Velho de Brotas relembra encontro surreal em São Paulo, cita exemplo de Valdir Cabeleireiro e comemora sucesso nacional com comédia stand-up

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  • Da Redação

Publicado em 13 de dezembro de 2020 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Vivendo Boa Vida, no filme 'Capitães da Areia' por Foto: Divulgação

Jhordan durante apresentação de comédia stand-up (Fotos: Divulgação) Novos baianos passeiam num dia comum por São Paulo, em meados de 2019, até que um deles é abordado por um ambulante. O cliente-alvo é o ator e humorista Jhordan Matheus, hoje com 26 anos, que estava com cinco amigos num bar. É o único para o qual o vendedor se dirige, perguntando se deseja comprar paçoca. Criado por “avó macumbeira, véa porra louca”, como ele mesmo brinca, Jhordan diz ‘não’ ao ambulante, que insiste, até que desiste.

Intrigado com o foco em si, o gaiato quase sem grana (tempos bicudos na Pauliceia) faz um rateio rápido na mesa e diz ao vendedor para retornar. “Quando ele veio, me falou: ‘se você me chamou de volta, agora você vai me escutar’. Ele não sabia nada sobre mim, mas chegou e falou: ‘tá acontecendo o que você pediu, né? Tá preocupado com sua vó, com tudo, mas pode ficar tranquilo que vai dar tudo certo’”, relembra Jhordan, que recebeu um abraço apertado do estranho.

“O maluco me abraçou e falou: ‘olha, você vai ter tudo que você pediu, mas não esqueça a humildade, de onde você é, e de quem você planejou ser quando não era ninguém pra você mesmo. Chegou a sua hora de vencer’”. Recado dado, o vendedor se afastou do vencedor, mas na cabeça deste só ecoava uma coisa: 'Laroyê, Exu! Laroyê!’. “Nessa hora, a uns 20 metros de mim, ele olhou pra trás e disse: ‘É isso aí mermo’”. 

Jhordan ligou depois para a avó, com quem aprendeu a viver na Rua Chile do Engenho Velho de Brotas, e contou a história que deixou ele, o amigo comediante Romarinho Ferreira e as demais testemunhas em choque. “Você encontrou Exu”, confirmou dona Maria Irani, 70 anos, que é a protagonista de boa parte das histórias que o filho de Xangô, Jhordan Matheus, conta em suas apresentações nas casas de shows de São Paulo e Brasil afora, muitas das quais vem conseguindo lotar há quase um ano. 

Arte na veia A repercussão de alguns vídeos que posta em suas redes sociais, a exemplo da releitura da canção ‘Rita’, de Tierry – que tem mais de 4 milhões de visualizações no seu TikTok, e 2 milhões no seu YouTube, fora as inúmeras reproduções em outros perfis bombados –, é uma prova de que a hora de vencer chegou, de fato, após cinco anos se erguendo na comédia em pé. Um retrato antecipado dos mais recentes lances do nosso Jhordan foi a participação no Conversa com Bial, da Globo, onde falou, entre outros temas, sobre racismo e representatividade no humor. 

Mas Jhordan já está nas cabeças há muito mais tempo. Em 2011, se destacou como o mais engraçado (eu diria talentoso mesmo) de ‘Capitães da Areia’, adaptação de Cecília Amado para o clássico do avô, Jorge. Boa Vida é o nome do personagem que, considerando o nome, não diz muito sobre a infância do nosso personagem: mesmo criado com vó, não tinha a mínima mordomia. Muito pelo contrário! Na casa em que se espremia com outras seis pessoas (a maioria tios), volta e meia faltava o que comer.

“Isso tudo [sucesso de agora] tá sendo sem tirar nada de ninguém. Tá sendo com meu trampo, meu corre, e com ajuda das pessoas ao meu redor. E eu quero passar isso. Eu quero que os pivetes da minha quebrada vejam que é possível”, conta ele, deixando bem claro que não quer ser exemplo de bom mocismo (até porque foi expulso de cinco escolas!), mas de atitude e perseverança naquilo que acredita.“Você não precisa se moldar a eles. Eu sou favelado, maloqueiro... Chegando no espaço que for, eu mostro que posso ser quem sou da forma que eu quiser, e mesmo assim chego, e vou agregando ao espaço”.O espaço geográfico em que vivia na infância, independente da falta de recursos, era abundante em talentos. Na vizinhança, exemplos talentosíssimos como os cantores Márcio Victor, Alex Xella e Bambam, e o percussionista Lu Vargas, só pra citar a galera da música. A própria turma em torno dele também fazia bonito, em qualquer samba junino/duro que come no centro desde sempre. “Meu primo Caíque, e também Bruno, Pimpolho, Wallace... A galera toda subia e descia tocando pelas ruas do bairro, com 12 pra 15 anos”, relembra o moço, que entre uma compra e outra que carregava para ganhar uns trocados das tias do Engenho Velho, arranjou um tempo pra batucar no bloco afro Os Negões.

Foi ali a ponte para mais um estágio nas artes, com presença de luxo (e precoce) nas telonas. Mas antes é preciso fazer um resumo dos corres que fez antes de virar ator de cinema, incluindo trampos em oficina, padaria, loja de celular, canteiro de obra e, como optamos por focar agora, entregando os salgadinhos de dona Socorro.

Favela vencendo Além dos vizinhos artistas, Jhordan também teve como inspiração Valdir Macário, dono da Valdir Cabeleireiros. “Desde os 12 anos que eu tento ganhar meu dinheiro e faço meus corres. Eu entregava salgados pra uma moça chamada Socorro. Um desses locais era o salão de Valdir, que era um homem negro, empreendedor de sucesso. Então, ele não era só cabeleireiro. Era um cara da quebrada, negão, que venceu e, porra, eu me inspirava nele. Eu pensava: ‘esse negão tem dinheiro, já tem carrão, venceu, a família tá bem, é bonita, expressiva, favela vencendo... Isso era uma inspiração pra mim, mas rolou uma merda do caralho”, diz, se referindo ao trágico assassinato de Valdir dentro do seu salão, na Vasco da Gama, em 2016. O processo sobre a motivação do crime ainda se arrasta na justiça.

A ida recorrente ao salão de Valdir o colocou no caminho d’Os Negões, que tem sede ali pertinho, e, certo dia, durante um dos ensaios embaixo do viaduto do Dique do Tororó, foi observado de longe por um olheiro de cinema. “O pesquisador de elenco passou no ônibus e viu a gente. Ele saltou no Habib's e voltou”, recorda Jhordan.

O tal produtor de eventos é, por coincidência, o bróder Elienilson Silva dos Reis, 39, o Léo 13, meu conterrâneo de Marechal Rondon, que estava catando os talentos para o novo ‘Capitães’. Dedicava-se à missão inglória de encontrar, para cada um dos papéis principais do filme, dez talentos em potencial pelas ruas de Salvador.

Léo recorda que Jhordan, desde aquela época, dava sinais de que seu caminho era o palco.“Ele vai falando as coisas e vão ficando engraçadas. (...) Eu tava passando um dia na Vasco e vi ele gesticulando e pensei: ‘caramba’... Desci, falei sobre o filme e, depois, ele foi fazer o teste. Acho que o único personagem que colou mesmo e que não tinha disputa era Boa Vida. O pessoal tinha dúvida com Dora, Pedro Bala, Professor, mas Boa Vida era dele”, destaca Léo.Fisgado pela arte Jhordan conta que, apesar da naturalidade com a qual lidou com a responsabilidade, não tinha a dimensão da coisa. “Eu fazia o filme e não conseguia ter noção que aquilo tava sendo engraçado”, afirma ele, relembrando a primeira cena em que seu personagem aparece e faz o cinema cair na gargalhada.

“O filme começou a rolar, as coisas acontecendo, e aí quando aparece a minha cena, eu acho que foi aí que eu senti que era um bagulho muito louco. É a cena que eu falo ‘ô, dona Luiza, me arranje uma laranja aí, vá’. Todo mundo ri, o cinema vai abaixo, e eu falei ‘caralho, que doideira é essa? Eu acho que a galera realmente me acha engraçado’”. O elogio à ‘peitama’ de dona Luiza é o início da conscientização como artista, ainda aos 14, para se dedicar a fazer as pessoas ficarem alegres. Dom e ofício.

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O riso próprio veio agora, em dezembro, quando conseguiu colocar a avó para morar num lugar mais bacana. “Eu era um pivete que pensava ‘um dia eu vou dar uma casa pra minha avó’. Só não sabia como. Isso eu falava muito”, conta Jhordan, que faz questão de relembrar, nome por nome, de quem o ajudou nessa trajetória (com perrengues de toda ordem, especialmente por São Paulo), embora nem todos caibam aqui nessa lista limitada.

Coube Carolina, sua ex-mulher, com quem tem dois filhos, e foi quem bancou boa parte de suas viagens no início da carreira, especialmente num período em que viveram em Feira de Santana pós-casamento; cabe Dani Souza, que o recepcionou na primeira aventura por São Paulo, onde foi mostrar o seu trabalho, se apresentando de graça em clubes de comédia; tem espaço ainda para comediantes como Gui Preto e Kedny Silva, que o ajudaram lá em essipê, assim como quem o colocou no primeiro show por lá, no Paralamas da Comédia: Marcão Nascimento e Paulo Fabião, sob indicação do baiano Lucas Carasek.

E, claro, caminhos abertos para Exu e para Xangô (este seu orixá), e quem mais ele citou por justiça, embora o pequeno espaço do jornal não permita cumprir a decisão judicial divina de forma plena. Na cena inicial de 'Capitães', Jhordan comenta que só podia ter nascido na Bahia, pois “em outro lugar não cabia”. Sorte que a Bahia é o mundo.

Confira outros vídeos do artista.