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Paulo Sales
Publicado em 3 de fevereiro de 2020 às 03:00
- Atualizado há 2 anos
Amanhã faço 50 anos. E um fardo de meio século se projeta sobre mim como uma noite de insônia. Um marco, uma pedra fundamental, uma sombra a cindir o que já veio e o que está por vir. Num intervalo de cinco décadas, a humanidade sobreviveu a duas guerras mundiais. Noutro, povoou os céus e alcançou a lua. É muito tempo e não é nada. Nos últimos 50 anos, eu, como qualquer ser humano ordinário, nasci, adolesci, amei e me devastei por amor. Cultivei amigos, desbravei cidades, bebi vinhos e me embrenhei em livros, filmes e canções que me transformaram. Casei, ganhei uma filha que amo, perdi um pai que amava, escrevi um livro, joguei sonhos fora, me despi de preconceitos. Virei gente, enfim.>
Não por acaso, tenho ouvido muito a canção Peter Gast, que Caetano regravou lindamente em seu último disco e cujos versos me dizem tanto: “Sou um homem comum / Qualquer um / Enganando entre a dor e o prazer / Hei de viver e morrer / Como um homem comum / Mas o meu coração de poeta / Projeta-me em tal solidão / Que às vezes assisto / A guerras e festas imensas / Sei voar e tenho as fibras tensas / E sou um / Ninguém é comum / E eu sou ninguém”.>
Por mais notáveis que sejamos (e eu definitivamente não sou), todos nós carregamos o germe da insignificância. Afinal, dentro de pouco mais de cem anos não haverá ninguém por aqui entre os 7 bilhões que hoje povoam o planeta. Seja o ancião que agoniza em Goa ou o bebê que acaba de ver a luz numa maternidade em Porto Príncipe. A finitude nos limita. Ou, como disse Brecht, “sabemos que somos fugazes. E depois nada virá, somente poesia”. Mas, por mais insignificantes que sejamos (e eu definitivamente sou), há em nós algo que avança como um incêndio, viceja como uma aurora, permanece como uma rocha.>
Há meio século peso sobre a Terra. Desde o momento em que, na forma de um rebento de mais de quatro quilos, rasguei a carne de minha mãe num hospital à beira da Baía de Todos os Santos. Nesses anos todos, venho tentando compreender a capacidade que tem o ser humano de se equilibrar entre a beleza e o horror: Veneza e Auschwitz, a Serenade de Schubert e o ruído de uma motosserra, Os Irmãos Karamázov e Mein Kampf. É um embate árduo e permanente, mas creio que o saldo é positivo. Deve ser por eu pensar assim que uma amiga disse outro dia que sou o ateu mais esperançoso que ela já conheceu. Talvez porque ame a vida e vislumbre o quanto ela é valiosa. Ou por saber o quanto, acima de tudo, é frágil e incompleta.>
Amanhã, o meu outono particular passa a ser mais denso e enevoado, com mais folhas amareladas rolando no chão. Mas nem por isso os barcos vão deixar de navegar. Que o mundo continue sendo explorado por meus passos e que – voltando a citar Caetano – as coisas migrem e eu sirva de farol. Um velho farol esquecido numa península desabitada, funcionando precariamente. Mas evitando que os navios naufraguem quando a treva for muito espessa.>