Memórias dos Carnavais de Moraes: artista cantou a folia baiana e influenciou gerações

Amigos relembram histórias e estudiosos falam do papel de Moraes Moreira para o Carnaval de Salvador

Publicado em 15 de fevereiro de 2021 às 05:50

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Marcelo Tinoco/Arquivo CORREIO
Carnaval de Salvador, 1986 por Foto: Manu Dias/Arquivo CORREIO

Um ato de desobediência deu a Moraes Moreira um posto praticamente inquestionável no Carnaval de Salvador: o de primeiro cantor de trio elétrico. Era 1975, um dos Carnavais para ficar na memória do artista, e já fazia algum tempo que o trio de Dodô e Osmar tinha um microfone. Mas não era para cantar, e sim para dar recados. Ao ligar o microfone, não por acaso apelidado de ‘Meus Amigos’, o restante do som tinha que ser desligado para evitar microfonia. Moraes nunca ligou muito para isso.

Ele queria cantar a qualquer custo, explica o historiador Rafael Rosa, mestre em História Cultural e autor do trabalho Na trajetória do trio.“Moraes já estava em cima do trio e ele não obedecia muito a essa lógica de ‘não pegue o microfone’. E cantava com microfonia e tudo, comendo no centro. Ele vai ser esse ousado que não se deixa disciplinar por Osmar, porque ele achava que a voz era importante”, explica Rosa.Os amplificadores do trio elétrico de Dodô e Osmar, na verdade, eram cornetas gigantes. Os músicos ficavam de cima do trio, puxando frevos e outras músicas populares, mas quem cantava era o povo, do chão. Moraes no Carnaval de Salvador em 1982 (Foto: Manu Dias/Arquivo CORREIO) Outros cantores já tinham passado pelo trio de Dodô e Osmar, como Gilberto Gil e Pepeu Gomes, mas nenhum foi tão desobediente quanto Moraes. “Ele criou um estilo de impostação e colocação de voz que era compatível com o som de fusíveis”, afirma o historiador Milton Moura, pesquisador do Carnaval. Moraes foi o homem que, literalmente, subiu no trio com canção e tudo. Sem qualidade técnica, é verdade, mas com a voz. Marcou o Carnaval de 1975 ao cantar Jubileu de Prata, gravada com Armandinho no ano anterior em homenagem aos 25 anos dos trio elétrico.

“Eu achei que ele ia sair só curtindo. Quando ele viu o microfone, ele pegou e cantou o Jubileu de Prata. O povo curtia, mas preferia o cavaquinho que entrava altão e tomava conta do som da praça”, lembra Armandinho, amigo que levou Moraes aos primeiros carnavais dele em trio elétrico.“Numa noite de trio elétrico, ele cantava umas duas ou três vezes. A gente dizia que Moraes estava esboçando os primeiros cantos. E ele: ‘Porra, esboçando não, eu cantei!”, conta Armandinho, aos risos.Parte da festa O baiano de Ituaçu parecia saber, lá em 1975, que faria história do Carnaval da capital. Antes de subir no trio, inclusive, foi para a rua com os instrumentos na mão, a pé. Para cantar, é claro! Quem conta essa história é Paulinho Boca de Cantor, companheiro antigo, desde os tempos dos Novos Baianos.

Era 1974:“Moraes ainda estava no grupo Novos Baianos e a gente saiu no meio da rua a pé, com os instrumentos na mão fazendo uma brincadeira, mostrando a nossa vontade de participar do Carnaval não só como folião, mas também como artistas”, lembra Paulinho.Para ele, Moraes é indestrutível. “Ele se foi, mas ele é uma presença na vida da gente todos os dias, ao ponto de a gente pensar que ele está sempre perto. É a consciência de que é indestrutível”, afirma, sobre o amigo que partiu em 13 de abril do ano passado, menos de dois meses após o último show no Carnaval de Salvador, em 22 de fevereiro.

O elo Para o historiador Rafael Rosa, que estudou a canção carnavalesca baiana, Moraes Moreira foi decisivo para o Carnaval na ‘dobradinha’ de 1974 para 1975, entre deixar os Novos Baianos e se tornar o ‘quinto’ dos irmãos Macedo, filhos de Osmar. Não por acaso, esses dois anos aparecem nas memórias dos amigos.

Moraes era como um elo em toda a história que foi se desenhando ao longo dos anos 1970. Isso porque, em 1975, Paulinho Boca de Cantor já falava em colocar o trio elétrico dos Novos Baianos no Carnaval, mas o projeto só foi concretizado em 1976.

A empreitada, inclusive, tem uma história à parte. Naquele ano, os Novos Baianos, já sem Moraes na formação, fizeram aqui a apresentação mais importante do ano: o Show de Verão na Concha Acústica. Da Concha, as caixas de som foram levadas para uma garagem no Bonfim. De lá, só saíram depois que o muro foi derrubado.“A gente pegou os equipamentos e botou em cima do trio elétrico, e foi uma loucura porque não cabia o equipamento em cima do trio. Ficou muito largo e não deu para sair da garagem, a gente teve que derrubar o muro ali da Baixa do Bonfim. Foi uma batalha”, lembra Paulinho.Mas o trio passou, seguiu pela Cidade Baixa, subiu a Ladeira da Montanha e, lá em cima, Baby avistou Moraes cantando no trio de Dodô e Osmar. Pediu permissão a Seu Osmar para cantar também. Novamente no Carnaval de 1982; cantores pertinho do público, como Moraes fez nos últimos Carnavais (Foto: Arquivo CORREIO) Ele aprovou, claro. “Meu pai disse: ‘O trio é de vocês, vocês fazem um trabalho maravilhoso, vocês podem cantar o que vocês quiserem’. E aí Baby deslanchou a cantar”, recorda Armandinho, sobre aquele Carnaval de 1976. Agora sim, havia qualidade técnica para levar a canção para cima do trio.

Poeta das massas Embora não tenha sido o primeiro artista a pensar canções para o trio – Caetano Veloso fez Atrás do Trio Elétrico em 1969 –, Moraes foi um dos responsáveis por alimentar a festa de canções. Suas músicas não marcaram só os melhores Carnavais dele, mas também daqueles que foram influenciados.“Ele é uma figura tão importante que eu acho que todos os anos que ele esteve presente, a gente tem ele inventando e reinventando o Carnaval. Não só a figura dele puxando o trio, mas principalmente alguém que está criando o discurso sobre essa festa”, aponta Rafael Rosa.As músicas marcaram, mesmo, gerações. Pombo Correio, uma das canções mais conhecidas da festa, marcou o Carnaval de 1978. Moraes colocou letra numa marchinha de Dodô e Osmar chamada, primeiro, de Double Morse. O Carnaval do Pombo Correio foi, para Armandinho, um dos mais emocionantes ao lado do amigo.

“O Pombo Correio foi uma música que fez tanto sucesso que o povo cantava. A gente estava ainda na deficiência do som e de voz, mas o povo todo cantava e isso foi uma das coisas mais emocionantes, a gente escutava o povo cantando junto ali com Moraes”, recorda Armandinho. Armandinho não foi só amigo, mas quem levou Moraes aos primeiros Carnavais em trio elétrico e tornou-se um grande parceiro musical: fizeram juntos Chame-Gente (Foto: Mário Marques/Divulgação) Moraes Carnaval Moreira As músicas que alimentaram a festa também ajudaram a eternizar o Carnaval de Salvador e influenciaram outros cantores importantes da festa, como Daniela Mercury, Saulo Fernandes, além de Gal Costa. É de 1985 um dos grandes clássicos do Carnaval: Chame-Gente, parceria com Armandinho.

Outra que marcou gerações foi Chão da Praça, de 1979, e Eu também quero beijar, de 1981. Para Milton Moura, Chão da Praça foi o grande hit de Moraes no final da década de 1970. “Dos Carnavais de Moraes, Chão da Praça é o hino de minha geração. Eu acho que Moraes consolidou, também, um espaço lírico para o Carnaval. A composição tem uma coisa lírica que no Carnaval vai ser cantado e evidenciado”, aponta.

Nos anos 1990, Moraes já era um dos grandes nomes da festa e justo naquele ano, houve um reencontro no trio elétrico dos Novos Baianos. O CORREIO chamou o episódio de um verdadeiro ‘enxame, gente’. Foi nesta década que Daniela Mercury encontrou mais vezes com ele e, numa dessas ocasiões, pediu uma música.

“A gente se encontrava todo verão, de alguma forma. Foi na época que eu pedi um frevo a ele, e ele compôs junto com Davi Moraes”, contou Daniela em live do CORREIO na última quarta-feira (10). A música foi Monumento Vivo, faixa de O Canto da Cidade. Em 1990, Moraes e Pepeu Gomes lançaram um disco juntos; teve reencontro dos Novos Baianos num trio elétrico (Foto: Marcelo Amorim/Arquivo CORREIO) A artista contou que encontrou com ele há um ano, pouco antes de Moraes morrer, após uma apresentação no Rio de Janeiro. Um encontro ao acaso, num restaurante já quase de portas fechadas pelo adiantado da hora.“Eu pude dizer a ele quando eu fui embora: ‘Saiba que eu te amo demais, sua música é fundamental para mim, nunca esqueça disso. Saiba que estou te esperando, quem sabe a gente se encontre em cima do trio’”, disse Daniela.O encontro não aconteceu, mas a artista compôs um frevo em homenagem a Moraes, gravado este ano junto com Gal Gosta, que também gravou ‘Festa do Interior’, um de seus maiores sucessos. “Muita saudade... Era um compositor maravilhoso, tem músicas belíssimas, lindas, incluindo Festa do Interior, que pra mim é uma canção simples e linda”, disse Gal, num vídeo sobre a homenagem.

Idas e Vindas No final dos anos 1990, Moraes se afastou do Carnaval de Salvador. Faltava apoio dos organizadores para os trios independentes, sempre no final da fila dos circuitos oficiais, e prestígio aos artistas que construíram a história do Carnaval de Salvador. Voltou em 2000 para uma homenagem aos 50 anos do trio.

“Moraes começou a se dividir, fazer uma participação aqui, mas aí começa a ser muito desprestigiado, porque nessas participações botavam ele no final da fila, porque os blocos eram os donos da rua. Isso foi um puxão de tapete”, critica Armandinho.

“Ele se foi com um pouco dessa mágoa. Moraes se revoltava muito com isso e ele se afastou. Se o povo reconhecia o artista, por que a oficialidade não reconhecia?”, questiona Paulinho Boca. Nos anos 1980, Moraes tinha o próprio trio independente e fazia encontros com antigos parceiros (Foto: Silfrêdo Freitas/Divulgação) Em 2010, ele voltou, de novo para uma homenagem ao trio elétrico, desta vez aos 60 anos. E ficou. “O que a gente vai ver a partir de 2010 é uma retomada gradual do Carnaval popular que começa a acontecer no Centro da cidade e, claro, desembocando na Praça Castro Alves. O primeiro ano que Moraes volta, você volta a ter essa geração frequentando essa festa, é a antiga geração e a nova geração num Carnaval sem cordas”, pontua Rafael Rosa.

Até 2019, Moraes ganhou uma companhia: o filho, Davi Moraes. Cantavam juntos no palco e em trios, depois nos pranchões, mais perto do público. Davi guarda boas memórias de ver o pai feliz.“Ali ele atingiu um objetivo, revitalizou o Carnaval da praça Castro Alves de uma forma que a praça recuperou, começou a ter um público maravilhoso de novo. Lotada a praça, sem briga, só tinha família. E lá vimos a passagem dos blocos afros. Foi muito emocionante se dedicar à praça, que era um xodó dele”, lembra Davi.

Dez Carnavais memoráveis de Moraes Moreira em Salvador:

1974: Ainda nos Novos Baianos, Moraes e os outros integrantes do grupo saíram nas ruas de Salvador durante o Carnaval, a pé, carregando os instrumentos. Era uma forma de dizer que eles queriam participar da festa e não só como foliões.

1975: Primeira vez que se cantou num trio elétrico. Moraes pegou o microfone no trio de Dodô e Osmar e cantou Jubileu de Prata, música em homenagem aos 25 anos do elétrico. Foi com microfonia e tudo.

1976: Moraes já não estava mais nos Novos Baianos, mas houve um encontro de trios: ele com Dodô e Osmar em um trio, os Novos Baianos no outro. Quando Baby viu Moraes cantando em cima do trio, perguntou a Seu Osmar se também podia cantar, e ele respondeu que sim: "O trio é e vocês, vocês fazem um trabalho maravilhoso, podem cantar o que quiserem!".

1978: Foi o Carnaval do Pombo Correio. Moraes colocou letra na música instrumental de Dodô e Osmar que se chama Double Morse, uma referência ao código morse. Virou Pombo Correio e estourou. Foi também o ano da morte de Dodô.

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1985: Chame-Chame, grande parceria de Moraes Moreira com Armandinho Macedo, nasceu em 1985. Nos anos 1980, Moraes começou a colocar na rua seu próprio trio, independente. Naqueles anos, aconteciam encontros memoráveis entre o trio de Moraes e o de Armandinho, Dodô e Osmar, onde tudo havia começado.

1990: Dois ex-Novos Baianos, Moraes Moreira e Pepeu Gomes fizeram no primeiro dia do Carnaval de 1990 o lançamento de um álbum que tinham gravado juntos. Lotou, os integrantes fizeram uma apresentação juntos, mas eles descartaram uma volta à formação original do grupo, com o qual Moraes havia rompido em 1975.

2000: No final dos anos 1990, Moraes se afasta do Carnaval de Salvador, sem apoio dos organizadores. Em 2000, faz uma breve aparição para comemorar os 50 anos do trio elétrico. Teve direito a encontro de trios no Farol da Barra com Armandinho.

2010: Depois de oito anos longe do Carnaval de Salvador, se apresentando na folia de Recife, Moraes retorna para uma homenagem aos 60 anos do trio elétrico. Passa a se apresentar ao lado do filho, Davi Moraes.

2018: Por dois anos seguidos, Moraes Moreira e o filho, Davi Moraes, se apresentaram num trio pranchão, com os dois artistas mais próximos do público, na Praça Castro Alves. "A gente resolveu parar um pouco do circuito Barra-Ondina para se dedicar à praça, que era um xodó dele. E aí a gente viu realmente a praça lotar e ter um público lindo, curtindo a música, sem violência", conta Davi.

2020: O último Carnaval de Moraes, desta vez sem o filho, Davi. O último show no Carnaval de Salvador foi no dia 22 de fevereiro, mais uma vez na Praça Castro Alves, onde ele mais gostava de estar.

*Colaborou Daniel Aloisio

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