Mesmo sem provas, a palavra do homem ainda tem mais peso que a da mulher?

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  • Da Redação

Publicado em 9 de junho de 2019 às 05:01

- Atualizado há um ano

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Depois do não, tudo é violência

Sem dúvida, os órgãos de segurança devem proceder à apuração dos fatos e a definição de culpabilidade ou não do jogador Neymar, cabe à Justiça. Mas o caso suscita reflexões vinculadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres. A primeira delas se refere ao que se considera estupro.

Uma mulher resolve aceitar um convite para ir a algum lugar ou se envolve em um clima e aceita carícias íntimas de outra pessoa. Na sequência, uma determinada circunstância a deixa desconfortável ou a pessoa se torna agressiva e ela pede para parar. A pessoa força a barra, sem o consentimento da mulher. Isso é estupro. Quando a mulher diz não, é não. O fato pode ocorrer com uma pessoa que se conheceu recentemente ou de convivência cotidiana, um namorado, marido ou companheiro. Depois do não, tudo é violência, uma vez que somente a mulher pode decidir sobre o seu corpo.

Também não se justifica, diante de uma denúncia de estupro, e em nenhuma circunstância, a divulgação nas redes sociais de “nudes” e cenas íntimas sem consentimento da mulher e frequentemente com o intuito de abalar a credibilidade da denúncia e em alguns casos por vingança, por se ter rompido uma relação amorosa. Além de ferir a lei do Marco Civil da Internet do Brasil, no seu principio de garantir a privacidade na rede, é um tipo de violência contra a mulher: a violência moral que gera constrangimento social.

Outro aspecto é que em uma sociedade onde impera o machismo, o sexismo e a misoginia, a informação fornecida por uma mulher muitas vezes não tem a mesma credibilidade que a fornecida pelo homem. Não é infrequente a mulher ser estuprada ou sofrer outro tipo de violência e a sua credibilidade ser posta em xeque. Ela tem, muitas vezes, que superar a desconfiança inicial e tipos de perguntas como: com qual roupa estava vestida no momento da violência sexual? Aliás, isso se constitui em mais uma violência. Se o fato ocorre numa delegacia ou numa unidade de saúde, por exemplo, caracteriza-se como violência institucional.

A masculinidade tóxica está na origem do que se chama de cultura do estupro. É a ideia de que o homem pode forçar um beijo na boca ou um coito, sem consentimento da mulher, para atender aos seus desejos e reafirmar a sua masculinidade. E ainda, se tenta passar a ideia de que mulheres gostam disso. Confunde-se masculinidade com virilidade e aprisiona o homem num modelo em que a masculinidade está associada ao desempenho sexual ou à ideia de que homem não pode recusar sexo.

É a masculinidade tóxica que faz com que o homem considere a mulher como sua propriedade, incluindo o seu corpo, disponível para atender às suas vontades e desejos. Esse tipo de masculinidade, a tóxica, está associada à agressividade, à opressão que está na base da violência doméstica e familiar contra as mulheres. A sociedade deve buscar relações saudáveis entre homens e mulheres, relações de respeito. E essa mesma sociedade não pode continuar adotando um modelo de educação que transforme homens em agressores e mulheres em agredidas.

Julieta Palmeira é médica e Secretária de Estado de Políticas para Mulheres da Bahia

Esterótipos antigos e muito preconceito

O caso Neymar coloca em movimento estereótipos antigos e expõe o modo como mulheres e homens se pensam e se relacionam. Nossos conceitos de masculinidade e feminilidade são distorcidos e idealizados, intoxicam nossos pensamentos e relações. Não somos capazes de nos entender, pois escolhemos dar relevo às nossas diferenças e apagar nossas semelhanças, optamos por acreditar que falamos línguas diferentes, pertencemos a planetas diferentes e que o outro, constituído em nosso oposto, é também nosso inimigo e não o nosso complemento. 

A opinião pública, assim, se divide, se indigna e se entretém. De um lado, aqueles que antes de saber da notícia já haviam decidido que a mulher maquiavélica estava tramando contra o indefeso homem. Do outro, aqueles que presumem que o homem é desde sempre um abusador e não exigem qualquer prova antes de condená-lo. Em ambos os lados está o machismo, dando contorno ao modo como pensamos homens-monstro e mulheres frágeis e santas ou homens puros e mulheres vis, sem singularidades, sem histórias próprias. Em nenhum dos lados se faz a reflexão do que nos predispõe a pensar de um ou de outro modo, nem se questiona a visão de mundo que o divide tão simplesmente entre lobos e cordeiros. Para todos os lados se é possível encontrar vítimas e algozes, mas onde encontrar pessoas responsáveis e conscientes?

Somos herdeiros de uma história violenta na qual a voz fora negada às mulheres. Fomos ensinados por nossos pais, e também por nossas mães, sobre a superioridade dos homens e a fraqueza das mulheres, mas eles estavam errados! Com muita luta, o quadro foi aos poucos transformado. Ainda hoje enfrentando resistência, elas podem ser ouvidas, mas resta uma distância entre ser ouvida e ser escutada com a atenção devida. 

Se a palavra das mulheres tem o mesmo peso no meio social atual que a dos homens, é só questionar acerca da diferença entre os salários e o tempo de mídia destinados ao próprio Neymar e à jogadora Marta, das preferências dos empregadores e patrocinadores, do tratamento que recebem as pessoas trans, da presença das mulheres nas câmaras legislativas, no STF, nos ministérios e em outros lugares de tomada de decisão, e terá a sua resposta. 

A própria necessidade de leis e políticas públicas que promovem a equidade revela um funcionamento social injusto. As mulheres costumam ser ouvidas quando se trata do bem estar dos filhos, pois ainda são associadas à imagem da mãe e da virgem, mas não quando há sexo envolvido. Manipular estereótipos é um modo de, senão calar, pelo menos reduzir o volume da voz que se deseja não ser escutada. Explicações sem exposições seriam suficientes, jogadores! Deixemos ao Poder Judiciário o ônus de julgar, a leitura das conversas, a visão das imagens e a sordidez dos detalhes.

Adriano Cysneiros é psicólogo clínico, dedica-se a ajudar pessoas a se sentirem bem com seus corpos e suas histórias, é mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA e estuda com profundidade os temas da sexualidade, violência, diferença e segredos. No Instagram: @fazendoocaminhodecasa

Até comprovação, o acusado é inocente

O fato envolvendo um suposto estupro praticado pelo futebolista Neymar em relação a Najila Mendes demanda um importante esclarecimento a ser feito preliminarmente: não se trata de uma guerra dos sexos no quesito credibilidade – a palavra de um homem não goza de maior prestígio que a da mulher. O episódio tem dois aspectos cruciais merecedores de um escrutínio mais aprofundado no que concerne ao tema opinião.

O primeiro deles liga-se ao nosso sistema acusatório. No Brasil, como em todo o mundo civilizado, vigora o princípio da presunção de inocência de qualquer pessoa, donde deflui que o ônus da acusação recai sobre quem a alega. Nos crimes mais graves, como o estupro, esse mesmo ônus é transferido ao Ministério Público, que terá a incumbência de provar os fatos que alegar em sua eventual acusação. Isto é: Neymar, embora possa, não está obrigado a fazer prova de sua inocência, pois esta já é presumida por nossa Constituição.

Posto isto, a primeira conclusão lógica que deriva das premissas anteriores é a de que não se trata de uma valorização maior da palavra do homem em detrimento da mulher; apenas ocorre, como em qualquer processo criminal, de o acusado, por força de lei, contar com uma proteção constitucional ao seu status de inocente até prova em contrário. Aos olhos dos movimentos identitários e militantes femininos pode soar como menoscabo à figura da mulher. Não é. Basta pensarmos que idêntico fato poderia ter ocorrido entre parceiros homossexuais, independentemente do sexo. A fórmula seria a mesma – presunção de inocência do acusado.

O segundo aspecto refere-se ao contexto. As opiniões migraram a favor do atleta logo que as conversas via WhatsApp foram divulgadas. A palavra de Neymar não ganhou contornos de verdade absoluta por ser ele homem. Ao contrário, antes da exposição das mensagens, não se percebia parcialidade. As pessoas ainda queriam entender o ocorrido. Com a divulgação, entretanto, restou clara a reciprocidade de interesse sexual, o consentimento para o ato a partir das palavras escritas, além da facilitação do deslocamento da moça para Paris.

E mais: posteriormente ao fatídico dia, Najila mais uma vez trocou mensagens eróticas pelo aplicativo de conversas. Ora, não é crível uma mulher sentir-se estuprada e permanecer agindo com carinho com seu algoz. Assim, o clima de opinião pendeu favoravelmente ao jogador por um processo de intelecção humana a respeito do senso comum sobre o estupro como sexo não consentido. Não obstante tenha exposto sua privacidade com Nájila, Neymar buscou resguardar sua honra e dignidade, algo legítimo para qualquer humano acusado de um crime brutal. As palavras tem o mesmo valor, mas ter provas ainda faz uma enorme diferença.

Bernardo Guimarães é membro do Ministério Público, do Instituto Conservador e Liberal A. Lacerda e autor do livro Nadando Contra a Corrente

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