Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 28 de fevereiro de 2021 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Certa proteção nos segue nos momentos mais inusitados. Agora mesmo, enquanto escrevo esta crônica e penso na morte do poeta beat Lawrence Ferlinghetti, ouço suave ruflar de asas na varanda do apartamento. Deve ser bem chato ser um anjo, já que, à sombra do livre arbítrio, sempre batemos a cabeça contra o muro.>
O espanto do terrível em Rilke. Porque também é grandioso. Descansando do mundo no alto das torres, como em Wim Wenders, ou ocupando ao nosso lado o banco vazio no ônibus quando adormecemos. “Este é o tempo do dizível, esta é sua pátria”. Por trás da palavra, por mais tola, escondemos o mundo, verde folha na floresta.>
Somos apenas aprendizes do intenso diante dos anjos. Risco com lápis longos trechos da Elegia de Duíno, apanhado por acaso na estante. Para lidar com o mistério, inventamos que pensar é complexo demais para o cotidiano. Um só desenho nunca basta. Fazemos isso desde os mamutes nas cavernas. “A vida é o lado de fora”.>
Como você se chamava antes de ter um nome? Um koan é algo como impor três pontos a uma frase. Qual o som de uma única mão batendo palmas? Minha experiência com anjos passa por certa ingenuidade cultivada na infância. Rezar a pequena oração que minha mãe rezava. “Se a ti me confiou a bondade divina”.>
Tens minha guarda, Miguel. Desde menina. “Nada fica fora do alcance de seus olhos, de seus ouvidos e de suas mãos”. Disse o Senhor das Folhas numa espécie de mantra. Mas há seres que nada falam, que andam com quatro patas, e até mesmo voam. Giram em torno de nossos pés, ignorando se são gregos ou egípcios.>
Os meus pés, por exemplo, nasceram troianos. Tudo que há de ânima, os anjos investigam. Nosso abandono. Esvoaçam de repente em redemoinho no céu diante de nossos olhos. Quase dança contra o azul. Ignoramos que até as árvores do parque nos guardam. Mesmo a noite cerrada, o barulho intenso, a dor deselegante.>
E há humanos. O carro sem gasolina no perigoso ermo. O senhor negro que do nada veio e se postou ao meu lado. A moça branca que ofereceu carona até o posto com medo do homem que ajudava. E de voltar ao local, com o combustível, e contar com a generosidade daquele moço gentil e digno, que montou guarda.>
O desconhecido que gritou de madrugada de seu prédio, impedindo o prosseguimento de um assalto que se tornaria violento. O bom moço que declinou da maldade combinada com seu grupo, após termos uma conversa. A colega de escola que inventou calúnias. Peço que lhes concedam guarda, todos os anjos.>
*Kátia Borges é escritora e jornalista>