Missa da canonização de Santa Dulce dos Pobres teve trechos até em chinês

Português foi ouvido quando o nome de Dulce foi citado na fórmula da canonização e nas preces

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  • Jorge Gauthier

Publicado em 13 de outubro de 2019 às 18:13

- Atualizado há um ano

. Crédito: Vatican News

Em 2h30 os olhos atentos da dona de casa soteropolitana Vera Novais, 49 anos, alternavam entre o Papa Francisco e uma freira indiana que estava ao seu lado, durante a missa de canonização de Santa Dulce dos Pobres, neste domingo (13), no Vaticano. O motivo? A celebração, presidida pelo papa Francisco, foi rezada em latim com alguns poucos momentos em italiano e somente dois em português. Outros trechos em francês, inglês e até chinês.

“Precisei ficar pescando, para ficar vendo em que página estava, de uma freira que sentou do meu lado. Eu nunca tinha visto uma missa em latim. Mesmo sem entender muito o que importa é que agora Irmã Dulce é santa”, sintetizou a baiana. 

As celebrações do Vaticano normalmente acontecem em latim especialmente as que são mais solenes como as de nomeações de novos santos. Nesta, que ocorreu no 28º domingo do tempo comum - quando a igreja por exemplo não está em alguma data comemorativa como Páscoa e Natal - foi escolhido um trecho do evangelho que falou do caminho da fé que está na Bíblia no Evangelho de Lucas. 

O Papa afirmou que os fiéis devem seguir as mesmas três etapas que foram cumpridas pelos leprosos curados, que invocam, caminham e agradecem.“Primeiro, precisamos invocar. Assim como hoje, os leprosos sofrem, além pela doença em si, pela exclusão social. No tempo de Jesus, eram considerados impuros e, como tais, deviam estar isolados, separados. Eles invocam Jesus ‘gritando’ e o Senhor ouve o grito de quem está abandonado (...)  Também nós – todos nós – necessitamos de cura, como aqueles leprosos. Precisamos de ser curados da pouca confiança em nós mesmos, na vida, no futuro; curados de muitos medos; dos vícios de que somos escravos; de tantos fechamentos, dependências e apegos: ao jogo, ao dinheiro, à televisão, ao celular, à opinião dos outros. O Senhor liberta e cura o coração, se o invocarmos”, disse Francisco. A missa foi dividida em cinco partes -  todas elas acompanhadas pelo coral do Vaticano que cantou  as músicas do repertório de canto gregoriano. Na celebração, houve a participação do cantor lírico carioca João Isaac Marques. Sessenta freiras da congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, a qual Irmã Dulce integrava, cantaram durante a missa. Elas vieram da China, Estados Unidos e Alemanha. 

Leia o especial Pelos Olhos de Dulce

Na parte eucarística aconteceu o momento no qual, oficialmente, os cinco beatos - inclusive Dulce - foram transformados em santos. Foram canonizados junto com a santa baiana John Henry Newman, cardeal, fundador do Oratório de São Filipe Néri na Inglaterra; Giuseppina Vannini (no século Giuditta Adelaide Agata), fundadora das Filhas de São Camilo; Maria Teresa Chiramel Mankidiyan, fundadora da Congregação das Irmãs da Sagrada Família e Margherita Bays, Virgem, da Ordem Terceira de São Francisco de Assis.

O rito da canonização começou quando o prefeito da Congregação das Causas dos Santos, cardeal Angelo Becciu, acompanhado dos postuladores das causas (advogados dos santos no Vaticano), pediu ao papa oficialmente a santificação. 

Nesse momento, Becciu leu a biografia dos cinco novos santos. Dulce foi a quarta biografia lida. No texto, o cardeal destacou a caridade da freira baiana.“Sua caridade era maternal e carinhosa. A sua dedicação aos pobres tinha uma raiz sobrenatural e do alto recebia forças e recursos para dar vida a uma maravilhosa atividade de serviço nos últimos anos”, afirmou cardeal Angelo Becciu. Na sequência, o papa leu a fórmula de canonização, momento em que reconheceu a santidade de cada um dos novos santos. O nome de Dulce foi proferido por Francisco às 10h33 no horário de Roma (5h33 no horário do Brasil).

Ao final desse momento, encerrou-se o rito da canonização em si e a missa seguiu com o canto da ladainha - parte na qual o coral canta música com o nome de vários santos da história da Igreja. Era obrigatório que todos que estavam no altar usasse roupas escuras - os jornalistas também, por ordem do protocolo do Vaticano.   

Santo livrinho Em 130 páginas, o livro-guia que foi distribuído gratuitamente na Praça de São Pedro trouxe todas as partes da missa incluindo a litúrgica  - das leituras -, que seguiu após o momento da canonização dos novos santos. Após a celebração, inclusive, vendedores ambulantes estavam comercializando o material por 50 euros (cerca de 250 reais).

Nas preces foi ouvido o segundo momento de palavras em português - o primeiro foi quando o nome de Dulce foi citado na fórmula da canonização. Pessoas de diversas partes do mundo fizeram preces em português, francês, inglês, espanhol e chinês -  para contemplar as congregações de Dulce e Maria Teresa que tem representações na China. 

Um dos momentos mais marcantes da celebração foi durante a liturgia eucarística, momento da missa onde acontece a comunhão dos fiéis precedida do ofertório. O Vaticano escolheu pessoas ligadas aos novos santos para levar itens ligados ao catolicismo ao papa como óleo, incenso e flores.

Por Dulce, foram José Maurício, o miraculado - o homem que era cego e voltou a ver após rezar para Dulce; Sandro Barral, médico das Obras Sociais Irmã Dulce que investigou os dois milagres da religiosa baiana reconhecidos pelo Vaticano; e Ângelo Calmon de Sá, banqueiro do extinto Banco Econômico, que foi um dos grandes apoiadores de Dulce. “Ela sempre foi santa”, resumiu Calmon. 

Após o ofertório aconteceu a comunhão em si, quando mais de 300 padres deram as hóstias que representam o corpo e o sangue de Cristo aos fiéis. “É uma emoção diferente receber a hóstia no Vaticano. Tem um gostinho de fé reforçada”, acredita Madalena Novaes, cozinheira de Mirantes de Periperi.  Relíquia de Dulce no centro (sobre uma pedra ametista) (Foto: Vatican News) As relíquias de Dulce e dos outros santos ficaram no centro do altar.  No rito final da celebração, o Papa leu a mensagem de encerramento - seguida novamente de cantos gregorianos - e reforçou a necessidade de agradecimento aos fiéis.

“O motivo pelo qual agradecer hoje são os novos Santos, que caminharam na fé e agora invocamos como intercessores. Três deles são freiras, como Irmã Dulce, e mostraram que a vida religiosa é um caminho de amor nas periferias existenciais do mundo”, disse Francisco, que depois do fim da missa circulou na Praça em carro aberto, o papa móvel.  Relicário com restos mortais de Irmã Dulce (Foto: Divulgação) Aspas de Francisco durante a Homilia

“Invoquemos diariamente, com confiança, o nome de Jesus: Deus salva. Repitamo-lo: é oração. A oração é a porta da fé, a oração é o remédio do coração.”

“ É no caminho da vida que a pessoa é purificada, um caminho frequentemente a subir, porque leva para o alto. A fé requer um caminho, uma saída; faz milagres, se sairmos das nossas cômodas certezas, se deixarmos os nossos portos serenos, os nossos ninhos confortáveis.”

“Constitui nossa tarefa ocuparmo-nos de quem deixou de caminhar, de quem se extraviou: somos guardiões dos irmãos distantes. Quer crescer na fé? Ocupa-se dum irmão distante.”

Confira a Homilia na íntegra

«A tua fé te salvou» (Lc 17, 19). É o ponto de chegada do Evangelho de hoje, que nos mostra o caminho da fé. Neste percurso de fé, vemos três etapas, vincadas pelos leprosos curados, que invocam, caminham e agradecem.

Primeiro, invocar. Os leprosos encontravam-se numa condição terrível não só pela doença em si, ainda hoje difusa e devendo ser combatida com todos os esforços possíveis, mas pela exclusão social. No tempo de Jesus, eram considerados impuros e, como tais, deviam estar isolados, separados (cf. Lv 13, 46). De facto, quando vão ter com Jesus, vemos que «se mantêm à distância» (Lc 17, 12). Embora a sua condição os coloque de lado, todavia diz o Evangelho que invocam Jesus «gritando» (17, 13) em voz alta. Não se deixam paralisar pelas exclusões dos homens e gritam a Deus, que não exclui ninguém. Assim se reduzem as distâncias, e a pessoa sai da solidão: não se fechando em auto lamentações, nem olhando aos juízos dos outros, mas invocando o Senhor, porque o Senhor ouve o grito de quem está abandonado.

Também nós – todos nós – necessitamos de cura, como aqueles leprosos. Precisamos de ser curados da pouca confiança em nós mesmos, na vida, no futuro; curados de muitos medos; dos vícios de que somos escravos; de tantos fechamentos, dependências e apegos: ao jogo, ao dinheiro, à televisão, ao telemóvel, à opinião dos outros.

O Senhor liberta e cura o coração, se O invocarmos, se lhe dissermos: «Senhor, eu creio que me podeis curar; curai-me dos meus fechamentos, livrai-me do mal e do medo, Jesus». No Evangelho de Lucas, os primeiros a invocar o nome de Jesus são os leprosos. Depois fá-lo-ão também um cego e um dos ladrões na cruz: pessoas carentes invocam o nome de Jesus, que significa Deus salva. De modo direto e espontâneo chamam Deus pelo seu nome. Chamar pelo nome é sinal de confidência, e o Senhor gosta disso. A fé cresce assim, com a invocação confiante, levando a Jesus aquilo que somos, com franqueza, sem esconder as nossas misérias. Invoquemos diariamente, com confiança, o nome de Jesus: Deus salva. Repitamo-lo: é oração. A oração é a porta da fé, a oração é o remédio do coração.

Caminhar é a segunda etapa. Neste breve Evangelho de hoje, aparece uma dezena de verbos de movimento. Mas o mais impressionante é sobretudo o facto de os leprosos serem curados, não quando estão diante de Jesus, mas depois enquanto caminham, como diz o texto: «Enquanto iam a caminho, ficaram purificados» (17, 14). São curados enquanto vão para Jerusalém, isto é, palmilhando uma estrada a subir. É no caminho da vida que a pessoa é purificada, um caminho frequentemente a subir, porque leva para o alto.

A fé requer um caminho, uma saída; faz milagres, se sairmos das nossas cómodas certezas, se deixarmos os nossos portos serenos, os nossos ninhos confortáveis. A fé aumenta com o dom, e cresce com o risco. A fé atua, quando avançamos equipados com a confiança em Deus. A fé abre caminho através de passos humildes e concretos, como humildes e concretos foram o caminho dos leprosos e o banho de Naaman no rio Jordão, que ouvimos na primeira Leitura (cf. 2 Re 5, 14-17). O mesmo se passa connosco: avançamos na fé com o amor humilde e concreto, com a paciência diária, invocando Jesus e prosseguindo para diante.

Outro aspeto interessante no caminho dos leprosos é que se movem juntos. Refere o Evangelho, sempre no plural, que «iam a caminho» e «ficaram purificados» (Lc 17, 14): a fé é caminhar juntos, jamais sozinhos. Mas, uma vez curados, nove continuam pela sua estrada e apenas um regressa para agradecer. E Jesus desabafa a sua mágoa assim: «Onde estão os outros nove?» (17, 17). Quase parece perguntar pelos outros nove, ao único que voltou. É verdade! Constitui tarefa nossa – de nós que estamos aqui a «fazer Eucaristia», isto é, a agradecer –, constitui nossa tarefa ocuparmo-nos de quem deixou de caminhar, de quem se extraviou: somos guardiões dos irmãos distantes. Somos intercessores por eles, somos responsáveis por eles, isto é, chamados a responder por eles, a tê-los a peito. Queres crescer na fé? Ocupa-te dum irmão distante, duma irmã distante.

Invocar, caminhar e… agradecer: esta é a última etapa. Só àquele que agradece é que Jesus diz: «A tua fé te salvou» (17, 19). Não se encontra apenas curado; também está salvo. Isto diz-nos que o ponto de chegada não é a saúde, não é o estar bem, mas o encontro com Jesus. A salvação não é beber um copo de água para estar em forma; mas é ir à fonte, que é Jesus. Só Ele livra do mal e cura o coração; só o encontro com Ele é que salva, torna plena e bela a vida. Quando se encontra Jesus, brota espontaneamente o «obrigado», porque se descobre a coisa mais importante da vida: não o receber uma graça nem o resolver um problema, mas abraçar o Senhor da vida.

É encantador ver como aquele homem curado, que era um samaritano, manifesta a alegria com todo o seu ser: louva a Deus em voz alta, prostra-se, agradece (cf. 17, 15-16). O ponto culminante do caminho de fé é viver dando graças.

Podemos perguntar-nos: Nós, que temos fé, vivemos os dias como um peso a suportar ou como um louvor a oferecer? Ficamos centrados em nós mesmos à espera de pedir a próxima graça, ou encontramos a nossa alegria em dar graças? Quando agradecemos, o Pai deixa-Se comover e derrama sobre nós o Espírito Santo. Agradecer não é questão de cortesia, de etiqueta, mas questão de fé. Um coração que agradece, permanece jovem.

Dizer «obrigado, Senhor», ao acordar, durante o dia, antes de deitar, é antídoto ao envelhecimento do coração. E o mesmo se diga em família, entre os esposos: lembrem-se de dizer obrigado. Obrigado é a palavra mais simples e benfazeja.

Invocar, caminhar, agradecer. Hoje, agradecemos ao Senhor pelos novos Santos, que caminharam na fé e agora invocamos como intercessores. Três deles são freiras e mostram-nos que a vida religiosa é um caminho de amor nas periferias existenciais do mundo. Ao passo que Santa Margarida Bays era uma costureira e revela-nos quão poderosa é a oração simples, a suportação com paciência, a doação silenciosa: através destas coisas, o Senhor fez reviver nela o esplendor da Páscoa.

Da santidade do dia a dia, fala o Santo Cardeal Newman quando diz: «O cristão possui uma paz profunda, silenciosa, oculta, que o mundo não vê. (...) O cristão é alegre, calmo, bom, amável, educado, simples, modesto; não tem pretensões, (...) o seu comportamento está tão longe da ostentação e do requinte que facilmente se pode, à primeira vista, tomá-lo por uma pessoa comum» (Parochial and Plain Sermons, V, 5). Peçamos para ser, assim, «luzes gentis» no meio das trevas do mundo. Jesus, «ficai connosco e começaremos a brilhar como brilhais Vós, a brilhar de tal modo que sejamos uma luz para os outros» (Meditations on Christian Doctrine, VII, 3). Amém.

* Jorge Gauthier é chefe de reportagem do CORREIO e está em Roma para fazer a cobertura da canonização de Irmã Dulce

*O projeto Pelos Olhos de Dulce tem o oferecimento do Jornal CORREIO e patrocínio do Hapvida.