Movimento Black Power inspirou criação de blocos afro, artistas e intelectuais na Bahia

Por aqui, o partido dos Panteras Negras e James Brown ganharam um toque de dendê e transformarem no Ilê Aiyê e no Olodum

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 27 de novembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Bolsas utilizadas por modelos do AFD 2021 foram inspiradas em capas das revistas Jet e Ebony por Foto: Acervo Pessoal

Diversas versões tentam dar conta da história do movimento Black Power em Salvador. Especialistas e pessoas que viveram naquela época, e aqui falamos do finalzinho dos anos 1960 e começo dos anos 1970, têm suas próprias versões, mas é difícil chegar a um senso comum. 

O fato é que foram os movimentos de luta negra nos Estados Unidos que inspiraram negras e negros aqui da capital baiana a soltar os blacks, adotar uma atitude política e estética mais ousada e até considerada subversiva pela Ditadura Militar e estruturas sociais da época. E mais tarde, inspirar artistas, militantes e intelectuais - sendo fundamental, inclusive, na criação da maioria dos blocos afro, trazendo um vínculo de orgulho entre Bahia e África.

Hoje com 62 anos, Carlos Pereira dos Santos lembra bem do que sentiu e viveu na época. Desde quando viu a chegada daquelas ideias, aos 10 anos, até o que viveu na adolescência e vida adulta - se tornando um símbolo dessa história aqui no estado. Carlos é mais conhecido como Negrizu, dançarino, coreógrafo e professor imortalizado como o Moço Lindo do Badauê, cantado por Caetano Veloso. "Quando a gente fica sabendo desses movimentos, com Panteras Negras, Malcom X, a  ngela Davis, tudo isso gera uma explosão. Quem é o pioneiro e precursor, realmente não sei. Mas sei que foi algo que tomou conta da gente, dos nossos espaços. A gente deixou crescer o cabelo, fazíamos nossas roupas, ouvíamos muita música. Era algo norteamericano, só que mais do que isso era algo negro. E precisávamos de algo nosso", afirma Negrizu. Negrizu é o Moço Lindo do Badauê, e testemunhou a chegada do Movimento Black Power na Bahia (Foto: Shai Andrade/Divulgação) Pente-garfo e política

Foi na esteira desse movimento que nasceu o primeiro bloco afro do Bahia: o Ilê Aiyê, criado em 1974 por jovens do bairro da Liberdade, onde o movimento Black Power movimentava o dia a dia dessas pessoas que criavam suas roupas cheia de estilo com fraldas de pano e fitas do senhor do bonfim, deixavam seus cabelos crescerem e os armavam com ajuda de pentes- garfo construído com aros de bicicleta. A ideia inicial de Vovô do Ilê, um dos fundadores, era que o bloco se chamasse Poder Negro, mas o alerta de amigos e familiares sobre uma eventual repressão do poder militar levou à mudança de nome. 

Inclusive, a euforia dos jovens vivendo tudo aquilo em festas e encontros era completamente oposta à desconfiança dos governantes naquela época. Os Panteras Negras tinham um discurso que amedrontava os militares e, portanto, todas as referências a eles eram consideradas subversivas. Nas ruas de Salvador, a tentativa de criminalizar essas expressões de valorização da própria beleza era recorrente: o próprio Vovô do Ilê perdeu a conta de quantas vezes teve ouriçadores (pente-garfo) apreendidos sob acusação de policiais militares que alegavam que ele ou seus amigos utilizariam o pente para assaltar.

“Hoje nós sabemos que foi revolucionário, mas na época ninguém falava nisso. Queríamos nos valorizar, curtir algo que era nosso, que era bonito. Todo final de semana tinha festa, as pessoas chegavam com seus LPs debaixo do braço, radiolas da Phillips. Quando a gente decidiu fundar o Ilê nossas referências eram essas. Panteras Negras, movimentos americanos, Black Power. O primeiro nome que nós pensamos foi poder preto, eu, principalmente, queria muito isso. Poder Negro. Fomos orientados, minha mãe me chamou atenção por conta do problema da ditadura”, recorda Vovô. Um dos primeiros desfile do Ilê Aiyê no Curuzu e diretores do bloco no movimento Black Power da década de 1970. Na foto: Maneca, Osvaldo Bailado, Antonio Carlos dos Santos (Vovô do Ilê), Bebete, Jailson e Cesar Maravilha (Foto: Acervo Pessoal) A repressão não foi suficiente para acabar com as calças boca de sino, os sapatos brilhantes, as camisas criativas e os cabelos: armados, trançados ou como bem a negrada queria. E com o passar do tempo, a Bahia tratou de colocar dendê naquelas referências, como bem recordam Negrizu e Vovô. “Aquela galera ali, de vários bairros da periferia de Salvador, foi fundamentalpara uma série de meninos e meninas se enxergarem como bonitos e acabou influenciando na criação de blocos afro, formação de artistas e até intelectuais negros. Continua formando até hoje”, reforça Negrizu.

É bem por aí : do Black Power, vieram os Blocos Afro. Esses blocos foram fundamentais na criação de um movimento de valorização das pessoas negras. A noite da Beleza Negra do Ilê, versos como “tenho cabelo duro, somos Black Power”, o bloco Os Negões, que valorizou a beleza do homem preto. Todas as movimentações de Ilê Aiyê e Olodum para oferecer uma formação a seus compositores, que transformaram histórias da África em versos que se tornaram imortais. Toda a origem disso é Black Power.

Pautas atuais 

Professor na Universidade dos Estado da Bahia, o antropólogo Ari Lima explica que o Black Power era um movimento estético e político por conta das reivindicações por direitos, diminuição da violência policial e uma série de pautas que vemos ainda hoje, quase 50 anos depois.

Segundo Ari, o Ilê Aiyê é um marco desse movimento aqui na Bahia. Foi quando o Black Power ganhou dendê, batida de percussão, samba e tempero locais. “A vertente do ativismo negro seria mais política, os blocos têm um ativismo mais estético, uma valorização dos corpos negros. O Ilê Aiyê é sobretudo estético e político porque se afirma e contesta a desigualdade por meio da estética e da dança, do adereço, da música”, afirma Ari, que é membro da equipe de pesquisadores do Instituto Nacional de Inclusão Étnica e Racial no Ensino Superior e tem estudos área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.  Curador do Afro Fashion Day, Fagner Bispo afirma que todas essas referências fizeram com que ele desejasse, já há um tempo, que o tema do desfile tivesse o Black Power no centro do conceito. Neste ano, entendeu que era a hora certa e investiu na ideia. “É interessante porque a gente vê como a moda pode ajudar as pessoas a se aceitarem, se amarem, e isso é revolucionário. Também foi um passeio pela história porque, no desfile, a gente saiu de décadas passadas e chegou em looks que vemos hoje”, conta.

Uma das caras do Afro Fashion Day em 2021, a modelo Katarine Cardoso está em sua segunda edição do evento e considera que o tema pegou bem no coração. “Eu gosto dos temas que foram colocados no desfile, da história e luta que cada tema carrega, me fez olhar pra essência deles. Ou seja, não é só beleza, é história. O Afro me ensinou que através de mim, da minha beleza, eu posso carregar uma história, uma luta também... Eu só preciso lembrar da força que vem da minha essência. Porque não sou só black, sou Black Power”, afirma.

O Afro Fashion Day é um projeto do Jornal CORREIO com o patrocínio do Boticário e Hapvida, e apoio Institucional da Prefeitura Municipal de Salvador, Sebrae e apoio do Shopping Barra, Laboratório CLAB, CCR Metrô, Clube Melissa e Vizzano.