Musicalidade do soteropolitano vem da influência africana e da cultura do Carnaval

Veja como cultura musical se formou na capital baiana

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  • Doris Miranda

Publicado em 29 de março de 2019 às 08:00

- Atualizado há um ano

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A música não tem emoção, quem tem emoção é gente. Mas acontece que a gente de Salvador, segundo o músico Paulo Costa Lima, foi civilizada pelos africanos trazidos para a Bahia como escravos e se criou embalada pelo batuque ancestral. E é justamente essa acentuação rítmica que puxa todo mundo para cima, refletindo um sentimento coletivo de alegria.

“A percepção da música tem a ver com a percepção do movimento que ela induz e essa música trazida para nós induz essa alegria de tantas Áfricas que se reuniram na Bahia. Na África a música está ligada à sensação de alegria e resistência”, explica o compositor e professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, integrante da Academia Brasileira de Música.Apesar de tanto não Tanta dor que nos invade, somos nós a alegria da cidade Apesar de tanto não Tanta marginalidade, somos nós a alegria da cidade (Alegria da Cidade, Margareth Menezes)É como se todos nós, soteropolitanos, tivéssemos a mesma reação de êxtase, como numa liberação coletiva de ocitocina, um dos hormônios ligados ao amor e ao prazer. “A música é bioquímica, a ocitocina é um marcador emotivo e a nossa alegria é herdada do coletivo africano que passou a representar nosso senso estético e rítmico”, explica Costa Lima.

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Agora, como afirma o professor, há que se ressaltar que esse foi um aspecto construído para culminar no Carnaval. Muita gente que sai hoje para pipocar na rua, provavelmente, não sabe que até início dos anos 1940 os corsos desfilavam ao som de óperas. “Depois, vem o frevo, que é um jogo de acentuação muito alegre, e um contínuo processo de africanização e popularização da música carnavalesca”, completa. Quando a axé music surgiu, nos anos de 1980, o que se viu foi uma transformação dessa alegria em espetáculo, transformando o que era espontâneo indústria cultural. “Por isso, digo sempre que a axé music não é um gênero musical, mas sim um movimento cultural, que é a baianidade”, opina o cantor e compositor Luiz Caldas.“Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia/De todos os santos, encantos e axé, sagrado e/Profano, o baiano é carnaval… (Chame-Gente, Trio Elétrico Armandinho Dodô & Osmar)Para ele, que estourou nacionalmente em 1984, com Fricote, a alegria debochada do soteropolitano é muito espontânea e entrou de forma natural no cotidiano. “Antes dos anos 80, Salvador não tinha uma cultura de shows  carnavalescos. Fizemos um movimento de desbravamento. Com Fricote, o Brasil passou a ver nosso Carnaval e Salvador começou a receber turistas pela música”, completa.

Uma das pioneiras no movimento da axé music, Margareth Menezes emplacou com a autoexplicativa: Alegria da Cidade, composição de Lazzo e Jorge Portugal. Seu olhar, porém, vai além da festa em si. “A alegria do povo de Salvador vem pela resistência,  pela luta constante, e cada conquista é uma alegria da resistência de abrir espaços para ocuparmos através da cultura, da música, da levada da percussão. Mas Salvador não só Carnaval, não; a alegria da cidade emana uma energia que vem da superação das dificuldades”, pondera.

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Descontração - Luiz Caldas, que teve a faixa Bervely Hills censurada,  ressalta que a alegria trazida com a axé music era uma maneira de contrapor o ‘mal humor’ remanescente da ditadura. “A gente conseguiu quebrar a sisudez do país. Mas, nada daquilo era novidade. O tropicalismo fez isso muito antes, no auge da ditadura”, diz Para Luiz Caldas, a axé music trouxe mais alegria para a sisudez do Brasil pós-ditadura (fotode Evandro Veiga) Bem-vindo a Salvador/Coração do Brasil/Vem, você vai conhecer/A cidade de luz e prazer/Correndo atrás do trio/Vai compreender que a baiano é/Um povo a mais de mil/Ele tem Deus no seu coração/E o Diabo no quadril/ (We Are Carnaval, coletivo de artistas)Para a pesquisadora Agnes Mariano, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, a música baiana, essencialmente dançante, tem como característica o fato de reunir gente. E, por isso, fortemente calcada nessa cultura da alegria e descontração, vinda da tradição africana.

“A música, especialmente ritmada e acompanhada da dança, é gregária, própria para ouvir, tocar, cantar e celebrar a vida juntos. O que tem muito a ver com a sociabilidade local, de matriz afro-brasileira. Os ritos de origem africana envolvem música, dança, expressão de sentimentos, comensalidade, comunhão. São participativos. Num terreiro de candomblé, as pessoas batem palmas, cantam, comem juntos. A cultura afro está impregnada nos baianos, sejam eles negros ou brancos e de qualquer religião”, avalia. Marareth Menezes é a voz do sucesso Alegria da Cidade: "A alegria do povo de Salvador vem pela resistência (foto de Evandro Veiga) A praça Castro Alves é do povo como o céu é do avião/todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão (Um Frevo Novo, Caetano Veloso)Some-se a isso, o clima constantemente quente, que reforça ideias como descontração, despojamento, prazer, alegria, que fazem com que as pessoas repitam danças e refrões como se não houvesse amanhã durante os quase 15 dias de Carnaval, por exemplo. Mais uma vez a África. “Os coros, que são sons de línguas africanas, têm muita importância no sentimento de alegria”, pondera Paulo Costa Lima.

“A música tem uma presença muito forte na cultura baiana. Inclusive de uma forma abusiva. As pessoas ouvem música muito alto, em qualquer bairro, em qualquer lugar, a qualquer hora. Soube que existe até uma leniência da legislação em certos períodos do ano. O nosso amor à música em Salvador não precisa ser sinônimo de desrespeito ao espaço do outro”, pontua Agnes.