Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 8 de novembro de 2020 às 05:30
- Atualizado há 2 anos
O varal repleto de panos coloridos esticava o olhar do empresário até o outro lado da larga avenida litorânea. Vestígios de pobreza resistiam nos casebres em contraste com os prédios altos construídos há uma década. A visão de uma mulher de seios flácidos sentada na porta de uma das casas distraía ainda mais o homem de negócios.>
Pernas volumosas ao redor de uma bacia de alumínio, ela parecia cantarolar alguma canção, as mãos mergulhadas na espuma, a esfregar e torcer peças de roupas. Duas crianças ao seu lado sopravam bolhas de sabão em pequenos aros de plástico. Um senhor esquálido apareceu na porta, dorso nu, e se espreguiçou inteiro.>
Enquanto aguardava o início da reunião, em seu envidraçado escritório, diante da Baía de Todos-os-Santos, o empresário pensava em um modo mais humano de comunicar a ação de despejo a famílias como aquela. Aos que podiam pagar, pertenceria o Oceano Atlântico e o ar puro respirado nos quintais dos condomínios de luxo.>
Na larga avenida litorânea, passarelas modernas, feitas de concreto e aço, desembocariam diretamente na areia, ligando mansões a praias particulares. O homem de negócios tivera a ideia genial anos antes, e conseguira aprovar projetos arquitetônicos que uniam monumentos públicos a edifícios.>
Foi assim que o Solar do Unhão, com seu Parque de Esculturas e toda a extensão do Museu de Arte Moderna, passou a integrar a área exclusiva de lazer de um complexo residencial caríssimo. Debruçados sobre o mar, prédios gigantescos, num golpe de misericórdia, interditaram a última visão da Baía.>
Vendidas todas as unidades, em menos de um mês, o empreendimento possuía como atração sobrenatural o fantasma de Pedro de Unhão Castelo Branco, que costumava passear no playground e conversar banalidades com os moradores. O gênio da construção também dera uma nova destinação ao Elevador Lacerda.>
Um estacionamento imenso engolira as casas de maus costumes na Conceição da Praia. Na parte superior, onde antes havia a Praça Municipal, ergueram-se quatro imponentes torres envidraçadas, com piscinas individuais nas varandas. Naquela reunião, o homem de negócios pretendia apresentar um novo projeto.>
Pensava agora em sugerir a integração entre igrejas seculares e prédios modernos. A iniciativa viabilizaria a preservação dos acervos católicos, muito embora estes ficassem acessíveis apenas aos seus mantenedores. Missas particulares seriam rezadas em templos históricos, transformados em capelas privativas.>
Para famílias como aquela, cujo cotidiano colorido o divertira durante a espera, restariam bairros cada vez mais distantes. A mulher, o homem e seus filhos ainda não sabiam, mas deixariam em breve a larga avenida litorânea. Sem alternativa, seguiriam para a vizinhança de outros tantos exilados da cidade.>