Na real, foi painho

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Publicado em 29 de agosto de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

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É quase regra: nós cozinheiras sempre atribuímos o nosso talento e bem-querer pela comida às nossas mães e avós. De fato, é natural que tenhamos aprendido com elas, afinal, tivemos mães e sobretudo avós, cujos “lugares eram na cozinha”. Mas se a gente tira essa lente do amor que romantiza a imagem da vovó na cozinha podemos nos chocar com a realidade de mulheres profundamente infelizes, que não tiveram escolha a não ser tornarem-se exímias cozinheiras porque precisavam de aprovação.

Em “O poder do discurso materno” a terapeuta familiar argentina Laura Gutman (recomendo SUPER) canta a pedra da repetição deste discurso - e da besteira na qual caímos em consequência disso - de construirmos uma personagem na esperança de obter amor e aceitação, o que na realidade normalmente nos desconecta desde bem lá atrás do que de fato somos em essência. É por isso que muitas de nós “nos identificamos” com esse complexo da cozinheira afetiva e às vezes nos tornamos cozinheiras, ainda que com update de estilo, mas na verdade #somostodasdonabenta.

Podemos começar a fazer tudo direitinho, nos matriculamos na faculdade, nos vestimos com as roupas e as armas de Joana D'Arc, estruturamos uma cozinha e um serviço o mais profissional possível, entramos no mercado e até arrasamos, mas um dia podemos acordar em profunda melancolia, e se apurarmos bem a nossa escuta interna podemos jurar que ouvimos uma voz sussurrando alguma coisa do tipo “esse aqui não é o meu lugar”. Nos levantamos de susto, tentando abafar essa voz que poderíamos jurar que é a nossa própria. Que loucura! A essa altura do campeonato? Essa voz pode ser de verdade a nossa, presa lá dentro dos nossos próprios confins, vítima do discurso materno, que ao invés de ter sido quem é, foi condicionada a repetir os padrões de mainha, voinha, bisa e anarriê adentro. Ou não!

Mas não era para ser sobre mainha “esse bilete”. É sobre painho.

Recentemente fiz uma viagem terapêutica para a cidade da minha infância para encontrar a minha menininha, mas foi o meu pai quem encontrei. E como ele estava vivo e lindo!

Os primeiros lugares que busquei foram as feiras livres, afinal os melhores dias da minha infância eram as manhãs de sábado (e é por isso que as amo com tanta devoção até hoje) quando o meu pai me tomava por uma mão, na outra uma imensa cesta trançada, e tomávamos o rumo da feira. Na chegada, me comprava um enorme colar de licuri, que colocava ao redor do meu pescoço como uma guia sacramentada de comer, me instalava confortavelmente em seus ombros com agilidade impressionante, segurando com a mão direita a minha perna direita e com a esquerda a cesta, para então mergulharmos naquele mar aberto de sensações que via do alto da minha perspectiva de cacunda de painho.

Para mim ele era bonito, alto e forte. Eu não sei como ele conseguia porque todos os meus sentidos estavam entregues aos rumores e cores e odores da feira, mas quando eu menos esperava ele me despertava daquele encantamento caótico e eu percebia que a cesta já estava cheia de suprimentos para uma semana e eu só tinha mais dois coquinhos no meu colar. A festa não acabava ali, porém, porque fazia parte do nosso ritual um muito bem planejado desvio para o Bocomoco, um restaurante popular especializado à época em caça, onde costumávamos almoçar antes de voltar para casa. Foi lá que ele me incentivou a comer teiú, paca, cobra, jacaré, tatu e sapo (literalmente) dizendo que “é galinha, filha” com aquele sorriso galhofeiro preso no olhar. Foi também com o meu pai que desfrutei dos melhores banquetes de beira de estrada em viagens mágicas pelo Brasil afora na boleia de seu caminhão, mas já contei essas histórias muitas vezes.

Isso porque, valendo-me agora das terapias sistêmicas, “pai é mundo”. E foi percorrendo de novo (depois de mais de 40 anos), esses caminhos das nossas feiras de sábado, que eu percebi que apesar de ter aprendido a cozinhar com minha mãe e minha avó por motivos de repetição, foi painho que, bem antes disso, escancarou todas as portas da minha percepção não só para o fantástico mundo das artes culinárias, como também - e principalmente - para o mundo.

Sim, na real, foi painho.

UM MALASSADO PARA PAINHO:

Pré-aqueça o forno. Tome um filé mignon sem cordão, corte em pedaços de aproximadamente 15 cm e polvilhe pimenta do reino moída na hora.

Aqueça uma panela  de ferro untada com óleo de sua preferência e quando estiver BEM QUENTE, sele os pedaços de mignon virando o lado apenas uma vez, apenas até que fiquem pálidos por fora (não se esqueça que malassado não tem esse nome à toa e a finalização ainda é no forno). Transfira a carne temporariamente para um refratário ali do lado e salpique, só agora que está selada, alguma flor de sal. 

Regue a mesma  panela de ferro com oliva. Refogue 2 dentes de alho picados; 3 tomates, 2 cebolas roxas grandes e 1 pimentão de cada cor em cubos grandes; some ½ pimenta dedo de moça e um punhado de hortelã grossa bem picadinhos.

Quando refogar  gostoso e começar a caramelar, solte esse fundo de panela com 1 long neck de cerveja escura ou malzbier. A depender do tanto de líquido que os vegetais soltarem, talvez menos de 1 garrafa seja suficiente.

Devolva a carne  para a panela do molho, incorporando-a suavemente e leve ao forno quente naquela panela mesmo (por isso a de ferro que tem as alças do mesmo material). Se você tiver grill no forno, programe 10 minutos para dar aquela gratinada por cima, senão 15 min a 180°. Mas ó, sabendo que cada forno tem seu próprio borogodó, portanto se ligue.

Enquanto isso,  vá colocado a mesa no quintal.

Na hora de servir, salpique cheiro verde e abafe com a tampa até a hora de abrir diante de todos com toda aquela mise-en-scène que pede a ocasião.

 Beijo, pai. Saudade. Te amo pra sempre.

 Sua menina dos olhos,

K.